Thursday, April 20, 2006

"Delegado federal confirma que crime é mesmo comum e garante que legista mentiu"



Capital Social OnLine -- Edição 2.200 - Nº 1519, Ano V - Do Editor
Grande ABC, terça-feira, 18 de abril de 2006

Caso Celso Daniel

Delegado federal confirma que crime é
mesmo comum e garante que legista mentiu*
**DANIEL LIMA

Material encaminhado por: Grupo Beatrice e Reinaldo C. de C. Filho

Pela primeira vez desde que atuou no caso Celso Daniel, logo após o sequestro seguido de assassinato em janeiro de 2002, o delegado da Polícia Federal José Pinto de Luna resolveu falar à Imprensa. Numa entrevista exclusiva a LivreMercado, esse profissional da elite da PF manteve o tom de voz seguro e discreto. Dispensou fotografias. Indicou que a ilustração do trabalho jornalístico poderia ser preparada com flagrantes da assessoria de Imprensa do Senado Federal, durante a sessão da CPI dos Bingos. Naquela oportunidade, Luna teve pouco tempo para expor detalhes dos pontos mais importantes do inquérito que chegou à mesma conclusão da força-tarefa da Polícia Civil de São Paulo: Celso Daniel foi vítima de crime comum, não de espetaculosa ação programada pelo empresário Sérgio Gomes da Silva, como reiteram os promotores públicos de Santo André.

José Pinto de Luna é policial atarefadíssimo. O encontro marcado com LivreMercado na Capital foi idealizado há mais de um ano. Até então não se tinha nem mesmo a trilha pela qual deveria ser percorrido o caminho editorial para extrair possíveis novidades.

Embora tivesse pouca oportunidade de se pronunciar na CPI dos Bingos, tomada naquele dia por subjetividades das declarações do médico-legista Paulo Vasques, Pinto de Luna deixou escapar pelo menos dois pontos que só não chamaram a atenção dos senadores porque a dispersão e o maniqueísmo imperavam no ambiente mais voltado à audiência do que propriamente à compreensão dos fatos.

Primeiro, o delegado federal disse que o médico-legista Carlos Delmonte mentiu ao afirmar que Celso Daniel foi torturado. Nesta entrevista, Luna explica a relação que manteve com o legista dias depois da morte de Celso Daniel. Carlos Delmonte cometeu suicídio em outubro do ano passado (veja matéria nesta edição) e encabeça a lista de profissionais do IML (Instituto Médico Legal) que assinam o laudo de necropsia do corpo do prefeito de Santo André.

Nem mesmo a indignação de acompanhar como telespectador Carlos Delmonte mudar toda a história numa entrevista concedida mais de três anos depois ao programa de Jô Soares abala a tranquilidade descritiva do delegado federal. Ele lamenta que Delmonte não esteja vivo para questioná-lo.

Segundo, Luna também não se perturba além do natural em relembrar que, na mesma entrevista a Jô Soares, o médico-legista que lhe disse que Celso Daniel não apresentava qualquer marca de tortura, no sentido político-administrativo do termo, mentiu igualmente quanto ao suposto uso da cueca do avesso pela vítima dos sequestradores. Mais que isso, Carlos Delmonte sugeriu que o uso inadequado da cueca indicaria que a morte de Celso Daniel estaria relacionada à traição.

Tanto a suposta tortura como sinônimo de violência com objetivo de obtenção de informações como a cueca do avesso foram argumentos que o suicida Carlos Delmonte utilizou para dar veracidade à versão de crime de encomenda. São dois pontos que ajudam a costurar enredo completamente diferente do investigado pela Polícia Civil e pela Polícia Federal. Por isso, são tecnicamente decisivos na elucidação dos fatos.

Para José Pinto de Luna, o desfecho policial do caso Celso Daniel foi uma frustração. Ele lamenta que a expectativa de consagrar-se com a prisão de gente graduada em Santo André, como se projetava nos primeiros dias de investigação, não tenha sido alcançada. A perspectiva de crime que envolvesse a administração do Partido dos Trabalhadores desmanchou-se na exata medida -- conta o experiente policial -- em que os grampos no Paço Municipal não sugeriam mais que indícios de possíveis irregularidades administrativas, enquanto, no outro núcleo de investigações -- sequestradores, familiares e pessoas próximas deles na Favela Naval, em Diadema -- consolidavam-se provas de efetiva participação no crime. Pior dos mundos: não houve durante todo o período de interceptação de telefones qualquer ligação entre os dois grupos investigados. Nenhum, absolutamente nenhum telefone entre membros da quadrilha de sequestradores e integrantes da administração Celso Daniel. Inclusive Sérgio Gomes da Silva.

José Pinto de Luna chega ao ponto de declarar que ficaria feliz em colocar Sérgio Gomes da Silva na cadeia, mas supostas malversações administrativas de que ele teria participado não são assunto de sua competência e não têm qualquer vínculo com a morte do prefeito Celso Daniel. Uma conclusão contestada pelo Ministério Público, instituição sobre a qual o policial federal simplesmente não faz qualquer menção explícita durante toda a entrevista.

Luna é profissional discreto, objetivo, tão econômico quanto penetrante nas palavras. Depois de uma hora de entrevista gravada, esse pai de seis filhos que vive integralmente o mundo de investigações insistiu na decepção de não ter atendido ao sonho de consumo de quem imaginava o caso Celso Daniel diferente do que foi constatado nos inquéritos policiais.

LivreMercado -- Como a Polícia Federal chegou à conclusão de crime comum?

José Pinto de Luna -- Chegamos a essa conclusão com a prisão dos dois principais participantes da operação, o Itamar e o Bozinho. Eles confessaram que pegaram o veículo do Celso Daniel aleatoriamente. Inicialmente pretendiam sequestrar um empresário do Ceasa, que acabou não passando por onde imaginavam. Então, decidiram abordar qualquer carro importado que passasse. Infelizmente, na hora, passou o carro do Celso Daniel.

LM -- Como se procedeu a operação para a prisão dos dois sequestradores?

Luna -- Fizemos rastreamento das pessoas ligadas a esses dois sequestradores, casos de parentes e amigos. Chegamos à conclusão de que eles haviam se refugiado na Bahia, na região de Itabuna. Foi aí que nos deslocamos para lá. Conseguimos prender lá na Bahia o irmão do Bozinho, conhecido como André Cara Seca. Prendemos o André Cara Seca em Vitória da Conquista. E lá já estava preso pela Polícia Civil o Edson (da Silva), só que não sabíamos desse detalhe. O Edson também participou do sequestro do Celso Daniel.

LM -- Sim, sim, ele foi preso pelos policiais do DEIC, comandados pelo delegado Edson de Santi.

Luna -- Exatamente. Ele foi preso pela Polícia Civil da Bahia que, quando soube da participação dele no crime do Celso Daniel, comunicou o DEIC que, através de seus agentes, foi até lá para buscá-lo.

LM -- A origem das prisões do Bozinho e do Itamar teve como base as interceptações telefônicas?

Luna -- Sim.

LM -- Como chegou à identificação deles logo após a morte de Celso Daniel?

Luna -- O trabalho foi feito através de análise criteriosa dos telefones utilizados pelos parentes desses então possíveis autores.

LM -- E como se deu essa operação?

Luna -- Trata-se de um serviço de inteligência policial que, infelizmente, não podemos detalhar senão poderia perder toda a substância de utilização em outros casos. Resumidamente, conseguimos individualizar os telefones daquelas pessoas entre milhões de usuários de telecomunicações. Foi através da interceptação desses telefones que prendemos os dois primeiros sequestradores.

LM -- Os senhores também interceptaram telefones-chave da Prefeitura de Santo André?

Luna -- No começo sim, porque a linha de investigação era exatamente essa: quais foram as pessoas que se locupletaram com a morte do prefeito? A primeira pessoa que se locupletou com a morte do prefeito foi o vice-prefeito. É claro que isso tudo no terreno da teoria investigativa e plausível. Quem mata alguém tem algum motivo para matar.

LM -- Então todos aqueles que giravam em torno do gabinete do prefeito Celso Daniel foram interceptados telefonicamente?

Luna -- Não. Alguns telefones foram interceptados. Interceptados com ordem judicial. Totalmente dentro da lei. Totalmente esclarecida ao juiz. Ninguém fez nada espúrio. Se o juiz negasse, estava negado. Fizemos absolutamente tudo com autorização judicial.

LM -- Os grampos solicitados pela Polícia Federal são os grampos famosos que, mais tarde, foram transcritos em páginas de jornais, em sites de Internet, para emissoras de rádio?

Luna -- Sim. Essas interceptações foram alvo de busca e apreensão pela 4ª Vara da Justiça Federal de São Paulo e mais tarde as fitas foram parar nas mãos do juiz Rocha Mattos. O mandado de busca e apreensão foi produzido na Delegacia de Apreensão e de Entorpecentes. Levaram todas as fitas. Entregamos as fitas porque não tínhamos interesse algum de esconder nada. Se perguntar quantas fitas eram, não lembro.

LM -- O senhor ouviu todas as fitas?

Luna -- Ouvi os diálogos mais interessantes, selecionados pelos analistas. Ouvíamos para orientar nossa linha de investigação.

LM -- Se o senhor tivesse que fazer uma avaliação até com certa carga de subjetividade sobre o conteúdo das gravações com relação ao crime e também sobre a suposta rede de corrupção na Prefeitura de Santo André, o que o senhor diria? Sobre o crime propriamente dito, as gravações tipificaram que alguém ou algum agente que girava em torno da Prefeitura participou do crime?

Luna -- Não chegamos a essa conclusão. Pelo que obtivemos na interceptação, não é possível chegar a essa conclusão.

LM -- E com relação à possibilidade de haver corrupção na Prefeitura, o chamado caixa dois? As gravações davam indícios nesse sentido?

Luna -- Sim, o material deixa latente só uma parte de indícios, não de provas. Pelo jeito que falavam, pelo jeito que falavam em se encontrar em determinado local, mostrava que queriam esconder alguma coisa.

LM -- Esse "esconder alguma coisa" estava restrito ao campo da administração propriamente dita?

Luna -- Sim, no campo da administração que a gente sentia isso. No aspecto criminal, tinha todo aquele temor do Sérgio Gomes cada vez que recebia uma intimação, que ia depor em algum lugar. Ele achava que estava sendo perseguido. Ele entrava praticamente em histeria.

LM -- Por que ele entrava em histeria, doutor? O que o senhor sentia nos telefonemas?

Luna -- Vou dizer o que é uma coisa subjetiva, o que eu penso, tendo em vista que ele já estava sendo questionado por que as travas do carro abriu, por que isso, por que aquilo: ele sentia que estava sendo investigado, como de fato estava sendo investigado.

LM -- O senhor sentia a tensão dele em que sentido?

Luna -- De ser interrogado, o temor de ir até a Polícia, de relembrar os fatos. Toda hora que entrava Polícia no meio, ele sentia um certo temor. Para nós a reação dele não estava vinculada ao crime em si, porque se ele não devia nada, por que estava com aquele medo todo? A gente dizia que ele tinha alguma coisa a ver, já que está com esse medo todo. E aí continuamos com essa linha de investigação, até que a coisa começou a andar mais para o lado dos criminosos. Então resolvemos deixar essa coisa aqui do lado, no caso o Paço Municipal, e investimos no outro lado.

LM -- Só para deixar mais claro: o senhor entendia que o comportamento do Sérgio Gomes poderia estar vinculado mais ao ambiente em si do caso que se formou do que propriamente em relação ao crime?

Luna -- Entendíamos que aquele temor dele poderia sim estar ligado ao sequestro. Depois reformulamos essa possibilidade. Mas naquele momento, perguntávamos o porquê daquela aflição toda. O que esse pessoal está devendo? Foi aí que começou a aparecer o outro lado da investigação, dos autores do crime. Então, resolvemos deixar a linha do pessoal da Prefeitura e atacar no outro lado. Até porque, se houvesse relação entre um grupo e outro, mais dia menos dia apareceria. É algo como uma ponte em construção, cujos extremos se encontram. Eles teriam que se cruzar, isso é inevitável. Portanto, tínhamos que investigar os autores do sequestro, porque a linha estava mais madura. Prendendo os autores, eles diriam que foi o Sérgio, foi sicrano, foi beltrano. Seria uma prova contundente. E esse pessoal foi preso e disse que foi um crime comum. E explicaram detalhadamente porque foi um crime comum. Os depoimentos foram gravados.

LM -- Qual foi a reação do senhor depois que os bandidos confessaram o crime e se descobriu que não havia qualquer relação com os supostos mandantes? Como o senhor analisa o comportamento do Sérgio Gomes e mesmo de outros integrantes da Prefeitura de Santo André durante a fase de investigação de interceptações telefônicas?

Luna -- Entendo que seria em razão de alguma coisa espúria que estivesse ocorrendo na administração e que não poderia vir à tona, mas não temos provas, é uma conclusão subjetiva.

LM -- Em todas as séries de telefonemas interceptados, tanto dos sequestradores quanto de outras pessoas, houve alguma ligação envolvendo gente da Prefeitura e os bandidos?

Luna -- Nenhuma ligação. São fatos distintos. De um lado tem o pessoal da Prefeitura e do outro os bandidos. Os bandidos continuaram a agir. Aliás, agiram antes do sequestro e depois do sequestro.

LM -- Os senhores monitoraram as ações de novos sequestros da quadrilha?

Luna -- Isso mesmo. Queríamos prendê-los e também localizar o cativeiro das novas vítimas.

LM -- O senhor tinha a interceptação mas não sabia onde os sequestradores estavam?

Luna -- Sabíamos a área geográfica, mas não precisamente o ponto onde estavam. Ouvimos eles preparando novos sequestros. Tem uma situação em que o Ivan Monstro conversa com uma pessoa e durante a conversa está passando pelo Parque Villa Lobos. Ele diz assim: "nossa, quantos torros aqui". Torro para eles é o cara que tem dinheiro, é sequestrável. Nunca tinha ouvido esse termo. Ele dizia ao telefone: "olha aquele torro ali, nossa um outro torro ali. Olha aquele torro que está no Mercedes, olha aquele torro de BMW". Todas aquelas pessoas para ele eram sequestráveis. Tudo isso após o sequestro e a morte do Celso Daniel. Em nenhum momento tudo o que ocorreu inibiu a atuação deles. Me refiro nesse caso específico ao Ivan Monstro, porque tanto o Bozinho quanto o Itamar já tinham fugido para a Bahia. O Ivan, que pertencia à quadrilha, continuou por aqui, monitorado por nós. Mais tarde ele foi preso pelo DEIC. Ele estava com quatro pessoas em cativeiro em Santa Izabel.

LM -- A finalidade do grampo do telefone do Ivan tinha qual sentido específico?

Luna -- Queríamos inibir a ação dele. Cada pessoa que ele planejava sequestrar, a gente conseguia detectar e frustrava a tentativa. Um exemplo foi o caso de um rapaz que, segundo eles, os sequestradores, era dono de um Fusca. Na verdade, não era um Fusca, mas um New Beetle. Ele era filho do dono de uma concessionária Audi. Fomos lá, frustramos o sequestro ao orientar o pai para não deixar o filho sair de casa em determinadas horas, para mudar de carro, para que se evitasse o mal maior. Mas mesmo assim o Ivan Monstro conseguiu sequestrar quatro pessoas ainda. Felizmente, o DEIC, conseguiu libertar esse pessoal.

LM -- Quer dizer que o Ivan Monstro mantinha ações ostensivas de sequestro e o Celso Daniel foi uma de suas vítimas?

Luna -- Acredito nisso. Até aonde investigamos, até onde a equipe da Polícia Federal investigou, foi aí que chegamos.

LM -- Nesses grampos todos dos membros da quadrilha e de gente próxima a eles, em algum momento aparece o Dionísio de Aquino Severo nas relações? Como o senhor sabe, o Dionísio fugiu de helicóptero um dia antes da Penitenciária de Guarulhos e acabou entrando na história como suposto participante do sequestro, contratado por Sérgio Gomes da Silva.

Luna -- Em nenhum momento aparece o Dionísio. Em nenhum momento. As gravações estão aí com o pessoal da CPI dos Bingos. Está disponível para quem quiser ouvir. Em nenhum momento aparece nada vinculando o Dionísio ao crime. Repito: até onde investigamos, não aparece nada.

LM -- Quanto tempo duraram as interceptações?

Luna -- Pelo menos um mês.

LM -- No depoimento dos dois sequestradores que os senhores delegados da Polícia Federal foram apanhar na Bahia o Dionísio não aparece em nenhum momento?

Luna -- Em momento algum eles citam o Dionísio.

LM -- Com a experiência que o senhor tem de policial, é possível que o Dionísio estivesse numa história dessa se não aparecesse no caso desde a origem?

Luna -- Aventamos somente uma hipótese de equívoco na investigação: se o sequestro fosse compartimentado e esse pessoal que prendemos estivesse alheio à outra parte da quadrilha, no caso do Dionísio. Uma suposição para tornar o enunciado mais claro: o Dionísio conhece o Edson a quem encomenda o sequestro e o Edson compartimenta essa operação com os outros. Poderia haver uma compartimentação? Poderia. É possível que o Itamar, o Bozinho e o John, que também estava na Blazer, estivessem alheios a que aquele carro conduzia o prefeito de Santo André? É possível. Mas, espere aí: se eles vão sequestrar um cara do Ceasa e a operação não dá certo, e eles dizem, em seguida, "vamos pegar aquele carro importado que está ali" e os caras já sabem que é o do prefeito de Santo André, teria de haver uma comunicação do Edson e isso não houve. A intenção de abordar aquele carro foi do Bozinho e do Itamar. Eles resolveram abordar o carro em que por acaso estava o Celso Daniel. Ninguém os orientou nesse sentido. Por isso, a possibilidade de compartimentação está descartada.

LM -- E o arrebatamento em si? Como foi o comportamento do Sérgio Gomes descrito pelos dois sequestradores que os senhores prenderam na Bahia?

Luna -- Eles disseram que estavam próximo ao túnel Maria Maluf e resolveram seguir o carro que não sabia tratar-se de Sérgio Gomes tendo Celso Daniel como acompanhante. Eles vão seguindo, sobem a ladeira, cruzaram a primeira avenida e começam a dar fechadas no carro. Eles vão abalroando o carro do Sérgio Gomes, lateralmente, claro, até chegar a um ponto em que conseguem travar o veículo. Quando ouvem uma sirene disparar, pensam que é a Polícia, mas depois constatam que não é nada disso. Em seguida, tentam tirar o Celso Daniel do carro. Mas antes disso eles dão tiro, furam o pneu do carro.

LM -- Quem que eles pretendiam tirar do carro, o Celso ou o Sérgio?

Luna -- Parece-me que foi uma coisa simultânea. O Itamar do lado do motorista e o Bozinho do lado do Celso Daniel. O Itamar fala que o Sérgio joga o carro em cima do carro e ele Itamar responde com uma rajada de metralhadora, só que o veículo é blindado. Aí eles começam a bater no carro, a dar socos no carro, a dar tiros no carro e é aí que o Bozinho consegue tirar o Celso Daniel.

LM -- Tentaram arrancar também o Sérgio?

Luna -- Segundo o Bozinho, tentou sim puxar o Sérgio.

LM -- Mas o objetivo era o motorista ou o acompanhante?

Luna -- Eles falam que seria o motorista, o cara que tem dinheiro. Eles pensavam que quem estava na direção do carro era o cara que tinha dinheiro. Isso não são palavras minhas. São depoimentos dos sequestradores que participaram diretamente do arrebatamento. Tudo gravado e entregue na CPI dos Bingos. Se naquele momento da prisão e do depoimento eles bandidos falassem que, "inclusive tinha uma mala de dinheiro atrás e o Sérgio está envolvido e arrumou para nós", nossa, na hora, era tudo o que mais queríamos.

LM -- Como assim, delegado?

Luna -- Me sinto até um pouco frustrado porque não tivemos o desfecho que a gente queria, de pegar um grande esquema com esse cara envolvido.

LM -- Isso quer dizer que em nenhum momento tanto o Itamar quanto o Bozinho falaram em sacolas de dinheiro?

Luna -- Nada. Está nas fitas. Eles estão dizendo espontaneamente como foi a operação. Foi exaustivamente perguntado a eles como foi a operação.

LM -- Qual é a importância de depoimentos como aqueles, no frescor da prisão?

Luna -- Muito importante. No caminho, de ônibus, eles já começaram a falar para a gente como foi a situação. Quando chegamos na Polícia Federal e, baseados no critério de oportunidade, pegamos uma câmera e filmamos o depoimento e a confissão deles. Essa fita guardei comigo para amanhã ou depois eles não falarem que apanharam, isso ou aquilo. Eles não podem dizer que foram torturados pelo delegado Luna, porque estava tudo ali, gravado, num ambiente sem qualquer tipo de constrangimento.

LM -- Quando o senhor providenciou a gravação não imaginava que o caso pudesse ter tantos desdobramentos?

Luna -- É um caso sério, que até hoje está em pauta. Posso falar com propriedade porque prendemos as primeiras pessoas. O Edson de Santi, do DEIC, e o DHPP fizeram a outra parte. De forma alguma houve conflito investigatório.

LM -- E cooperação?

Luna -- Cooperação houve, evidentemente. Cooperação de investigação.

LM -- Mas não houve colagem, como se insinuou?

Luna -- Não, de forma alguma. Foram atuações autônomas. Brigávamos no bom sentido para ver quem é que prendia primeiro. Era uma competição sadia. Quem não quer os louros de uma prisão? Eu sei que o pessoal do DEIC ficou meio "assim" com a gente, quando prendemos os dois primeiros sequestradores. Depois eles foram e prenderam outros, e nós ficamos chateados.

LM -- Tivemos então um caso típico de rivalidade sadia?

Luna -- Sim. E quem ganha com isso é a sociedade. Nos sentimos frustrados porque não continuamos nas investigações já que, declinada a competência do inquérito policial para a Justiça Estadual, a Polícia Federal saiu do caso.

LM -- E foi aí que o DEIC entrou com tudo, embora já estivesse no caso?

Luna -- Sem dúvida. Mas foram salutares as duas prisões que fizemos, porque abriram os portões da elucidação do crime. E provou o dinamismo das investigações, porque dizíamos assim para o pessoal do DEIC: "olha, nós vamos prender duas pessoas, vamos prender duas pessoas". A Polícia Federal tem autonomia para, de repente, eu estar aqui e pegar uma passagem aérea e ir para o Ceará, ir para Manaus, para o Acre, porque nossa Polícia é Polícia em qualquer parte da Federação. Não que a Polícia Civil não seja, mas para conseguir uma passagem aérea para sair daqui, precisa de anuência do secretário de Segurança Pública. No nosso caso, não. Só preciso de um telefonema para qualquer superintendente estadual e dizer que preciso ir para lá por causa de uma investigação. Imediatamente recebo a passagem de avião. As dificuldades que a Polícia Civil tem são bem maiores que as da Polícia Federal. Então, contamos com essa facilidade.

LM -- O senhor disse na CPI dos Bingos que a cueca que o Celso Daniel usava não
estava do avesso.

Luna -- A origem disso são as fotografias do corpo do Celso Daniel. Avaliando uma das fotografias, percebi que a cueca do prefeito estava com as costuras expostas e a etiqueta pelo lado de fora. Dava a entender que estava do avesso. O que imaginei? Que ele foi levado a determinado local, que foi seviciado, que foi torturado, que foi isso e aquilo e que na hora de se vestir, se vestiu às pressas e colocou a cueca daquele jeito. Ou então que ele já saiu de casa daquele jeito. Alguns dias depois houve uma reunião com todos os peritos envolvidos no caso para contribuir na antecipação das investigações, antes da formalidade do laudo de necropsia. Não era preciso esperar o laudo ficar pronto para dirimir e dirigir as investigações.

LM -- Quem estava nesse encontro com os legistas?

Luna -- Delegados da Polícia Federal, da Polícia Civil, representantes do Instituto de Criminalística, entre outros. Foi aí que conheci o legista Carlos Delmonte, que se mostrou um profissional hipercompetente. Todas as dúvidas que tinha sobre o caso ele foi saneando pouco a pouco. Foi uma conversa meio lateral, já que se formaram grupinhos de interlocutores. Um dos pontos que o abordei sobre o crime foi com relação à cueca. Ele disse que não tinha percebido nada diferente. Aí, peguei a fotografia e mostrei para ele. Isso tudo que estou dizendo está nos autos. Perguntei a ele a que se atribui aquilo e ele respondeu que não sabia. Perguntei então se o Celso Daniel foi seviciado, se foi torturado. Perguntei sobre o maxilar do Celso Daniel, que estava bastante danificado. Ele explicou tudo cientificamente. Não deixou dúvida alguma.

LM -- O senhor perguntou diretamente a ele se tinha havido tortura?

Luna -- Claro, e ele disse que não. Eu achava que tinha havido tortura até mesmo por umas equimoses nas pernas do Celso Daniel. Aquela expressão "tiro de esculacho" que apareceu intensamente no noticiário ultimamente, foi eu que falei para ele, Delmonte. Sugeri a ele que o Celso Daniel pudesse ter sofrido tiro de esculacho num cimentado, porque ficaram as marcas. Ele respondeu que aquelas marcas eram resquícios de pedra, de pedriscos, de brita, do terreno em que o Celso Daniel pisou.

LM -- Então o senhor Carlos Delmonte enfatizou que não houve tortura?

Luna -- Exatamente. E para mim ele era o profissional em quem devia confiar. Saí do encontro com ele completamente seguro de que não houve tortura. O perito falou está falado. Qualquer suspeita que tenha tido sobre tortura, para mim acabou ali, nas palavras do perito. Aliás, ele não disse isso apenas para mim, mas para todos os delegados que estavam presentes. Qual não foi minha surpresa, de repente, três anos depois, ele aparece dando essa versão de tortura e menciona o episódio da cueca. Isso tudo no programa do Jô Soares. Fiquei estarrecido. Peraí: essa tese da cueca do avesso foi eu que disse a ele. Ele nem sabia disso. Mais que dizer isso, ele afirmou que a cueca do avesso é tida no meio da malandragem como traição. Nunca. Não existe essa correlação. Pode perguntar para qualquer ladrão, para qualquer bandido.

LM -- E quando o senhor, que criou a suspeição de que a cueca estava do avesso e descobriu que não estava do avesso?

Luna -- Fiquei com esse caroço na cabeça. Por que a cueca estava do avesso, por quê? Dias depois, vestindo a cueca da mesma marca, da Hering, daquela do Celso Daniel, falei comigo: "poxa, coloquei a cueca do avesso, porque a etiqueta está do lado de fora". Em seguida, percebi que todas as cuecas da Hering daquele modelo que o Celso Daniel também usava tem a etiqueta do lado de fora. Então, aquela premissa que fiz ao Delmonte foi falsa. Mais ainda: as costuras também são externas. É fácil. Basta pegar um modelo semelhante. As costuras são externas, ponteadas em relevo. Infelizmente, levei uma falsa premissa a um perito que tomou isso como verdade. Depois desmenti, mas não sabia que ele tivesse tomado isso como verdade.

LM -- Isso significa que nesse ponto o laudo...

Luna -- Nesse ponto, o laudo está equivocado. E repito: ele era um perito hipercompetente. Foi isso que ele transmitiu para mim naquela reunião. Eu também sou profissional, mereço respeito. Ele me desrespeitou profissionalmente.

LM -- O senhor se refere especificamente à ida dele ao programa do Jô Soares?

Luna -- Sim. O desrespeito é daquele dia daquela reunião logo após a morte do Celso Daniel. Para mim, ele sim é que mentiu nessa segunda versão que apresentou na televisão. Na primeira reunião quando disse para ele que estava encarregado das investigações e que, depois de fazer uma pergunta a ele que poderia decidir o rumo dos trabalhos, se vou para o lado direito ou para o lado esquerdo, ele afirmou que devo ir pela direita, porque é a direita, puxa vida, então vou esquecer o lado esquerdo. Foi isso que ele fez para mim.

LM -- Quando ele disse claramente que não houve tortura?

Luna -- Exatamente, quando disse que não houve tortura. Se ali naquele momento ele disse que não houve tortura mas, como falou três anos e meio depois, houve tortura, ele me desrespeitou profissionalmente.

LM -- O senhor acha que havia tortura ou mudou em função de alguma coisa?

Luna -- A mim ele foi categórico e disse que não havia tortura. Acredito sim que não houve tortura. Até porque ele foi enfático e me explicou detalhadamente. E hoje tenho mais certeza sobre isso porque ele se baseou numa premissa minha de forma equivocada para se referir à própria tortura que negou lá atrás.

LM -- O senhor está dizendo com todas as letras que o senhor Carlos Delmonte mentiu com relação à autoria da questão da cueca do avesso e o coloca sob suspeição sobre a versão de que teria havido tortura?

Luna -- Sim. Acontece que no laudo ele não disse que houve tortura. O quesito é um só. E diz assim: "houve tortura, meio cruel". Meio cruel houve. Ele só coloca "sim". Mas ele é um perito hipercompetente. Se houvesse o termo "tortura", ele deveria responder "sim". Todo laudo tem um questionamento, de discussão e conclusão. Se fosse tortura, ele deveria responder "sim", mas com detalhamento. É uma coisa séria. "Sim", para mim, no meu ponto de vista, tecnicamente falando, não quer se referir unicamente a tortura. Já que ele era um perito gabaritado, ele, se tivesse havido a tortura no sentido que ele mais tarde utilizou, deveria colocar, porque eu colocaria, "T-O-R-T-U-R-A", caixa alta, padrão 18, intercalado, sublinhado e negritado.

LM -- E detalharia?

Luna -- Claro, sou profissional, faço isso em meus relatórios. Quando tenho que indiciar uma pessoa, tenho de dizer porque estou indiciando. Não escrevo que simplesmente indiciei. Indiciei porque as provas tais, às folhas tais, isso e aquilo.

LM -- O senhor está falando sobre os laudos com base nas informações recentemente divulgadas?

Luna -- Sim, porque quando nos afastamos do caso, os laudos não estavam prontos.

LM -- Não seria providencial algum tipo de mudança no preenchimento dos laudos?

Luna -- Os quesitos dos laudos necropsiais têm de ser formulados pelas autoridades policiais. Dessa forma, em casos como esses, os quesitos têm de ser separados entre as autoridades policiais e as autoridades necropsiais. Houve tortura? Sim. De que modo? O que leva o perito a crer? Discorra. Porque é assim que fazemos na Polícia Federal. E reservamos espaço para o perito julgar. Os quesitos são da autoridade policial. Como se pode explicar que um perito com a capacidade do Carlos Delmonte vai dizer "sim" e esquece de digitar o resto? Isso não é plausível.

LM -- De qualquer forma, e voltando ao principal, do aspecto criminal, o senhor acredita que, mesmo tendo a Polícia Federal se afastado do caso, após a primeira fase de inquéritos, o trabalho paralelo e depois complementar do DEIC e do DHPP tem uma lógica da arquitetura do crime?

Luna -- Concordo plenamente. Eles não estão se baseando em ilações. Estão indo pelas coisas concretas, pelo que os envolvidos diretamente estão dizendo.

LM -- Se tivesse que assinar embaixo as investigações do DEIC e do DHPP, o senhor assinaria?

Luna -- Assinaria. Porque não tenho dúvida. E repito: até onde investigamos e onde eles investigaram, eu assino embaixo com todas as letras. Agora, se tiver fatos novos, não posso dizer sobre isso, porque não sei. Por exemplo: se o Ministério Público chegar a conclusão de que tem uma ligação do Bozinho com o Dionísio. Não vejo essa ligação, mas se o Ministério Público está aqui para ver, aí eu me calo.

LM -- Lá na origem, diante de todas as investigações que foram feitas, 30 dias de grampos, se não aparece determinado personagem é muito improvável que ele tenha participado?

Luna -- O resultado não foi baseado apenas nas interceptações telefônicas. É todo o conjunto probatório. São as pessoas de um lado não sabendo quem são as pessoas do outro lado. É o Itamar praticando um sequestro que não era o primeiro, mas muitos, antes e depois do caso. Ele sequestrou um alto executivo da Volkswagen um dia depois que o Washington Olivetto foi sequestrado por outro bando. Ele sequestrou o executivo em frente ao Palácio do Governo, no Morumbi. Eu estava envolvido na investigação do caso Olivetto. Quando vi a notícia do sequestro do executivo da Volks, não acreditei. Esses caras são loucos. Será a certeza da impunidade? Eles não estavam nem aí. Depois continuaram fazendo uma série de sequestros. Então, temos sequestradores fazendo sequestro. Não temos sequestradores com crime de mando. O perfil deles é esse.

LM -- Em nenhum momento houve qualquer intersecção telefônica entre o Paço Municipal de Santo André e esses bandidos?

Luna -- Nas nossas interceptações, de forma alguma.

LM -- Doutor, no fundo, no fundo, quando começaram as investigações, o senhor gostaria que houvesse de fato o cruzamento do crime em si com a política? O senhor torcia para que a calça do Celso Daniel, por exemplo, estivesse de fato trocada?

Luna -- Sim. Cada situação que levava para a definição de crime comum, provocava uma certa frustração. Quem é que não quer fazer um grande caso? Que policial não quer ter em seu histórico um grande caso? Quando fui chamado para fazer a investigação do crime do juiz Leopoldino Marques do Amaral, em Cuiabá, e todo mundo falava que os desembargadores teriam encomendado a morte dele, me via diante de um esquema gigantesco. Quando comecei a apurar não era bem aquilo. A vítima era uma pessoa inescrupulosa, que não tinha o mínimo pudor. Aí vem a irmã falando que tinha uma relação incestuosa com a vítima. Eu praticamente esculachei a irmã, mas ela, na simplicidade dela, disse "tudo bem doutor, fui eu que sofri os abusos, não foi o senhor". Na vara que ele presidia, tinha desfalque financeiro. Mas a sociedade não quer isso. A sociedade quer o espetáculo.

LM -- O senhor imaginou que o caso Celso Daniel seria seu grande momento?

Luna -- Sim. Era tudo o que queria. Já pensou se tivesse um enredo assim: o vice-prefeito mandou matar o prefeito?

LM -- O senhor também trabalhou com a possibilidade de que o Sérgio Gomes poderia ser o autor intelectual do crime?

Luna -- Sim. Ele estava na qualidade de investigado. Quando a mídia colocou aquela história da trava da Pajero, que abriu, que fechou, naturalmente nos interessamos.

LM -- Como se faz uma boa investigação policial?

Luna -- Torturar, bater, agir de qualquer maneira para obter a confissão de um crime que não é da pessoa, não dá certo. Isso está mais que provado nos casos do Bar Bodega, da Escola Base. O caso do Toninho do PT também já diz isso, quando dizem que foram os motoqueiros que teriam matado. Isso não presta. Isso é investigação que mais cedo ou mais tarde vai ser desmascarada.

LM -- Qual foi o momento em que o senhor achou que o Sérgio Gomes não tinha nada a ver com o crime?

Luna -- Foi ele que tomou a rajada de metralhadora quando o carro foi abalroado pelos sequestradores. Estava na esperança de prender o Itamar e ele dizer que tudo aquilo foi simulado, que ele, Sérgio, pagou para que fosse feito o sequestro. Era tudo o que queria. A partir do momento em que disse que o Sérgio não estava envolvido, que jogou o carro que ele dirigia em cima do carro deles, a expectativa de culpabilizá-lo foi-se desmanchando. Depois, quando a gente vê que foi o próprio Sérgio Gomes que ligou para a Polícia Militar e avisou que o Celso Daniel foi sequestrado, e, baseado nessa informação, foi possível rastrear o telefone que nos levou à Favela Pantanal, em Diadema. Se o cara estivesse envolvido, por que que ele faria isso? Isso causa frustração. Mas mesmo assim você quer provar o contrário. Mas sou profissional. "Ah! mas ele não é boa bisca". Mas isso é outra coisa. "Ah! mas ele está envolvido em corrupção". Isso tem de ser apurado de outra maneira. "Ah! mas tem um esquema de ônibus". Tem que prender mesmo se ele matou a vovozinha dele, se ele achacou o lixo, a Prefeitura, o que for, mas não aqui, porque essa é uma investigação que não pode ser contaminada pelas outras. Tudo isso foi trazendo uma certa frustração para a gente. Se tivesse que botar esse cara na cadeia por esse homicídio, estaria muito contente. Não estou falando isso da boca para fora não. Mas a investigação não leva a isso. "Ah!, mas esse Klinger, esse Ronan Maria Pinto". Eles que fiquem com os problemas deles lá, entendeu, porque não vou ficar perseguindo ninguém.
Prisões 40 dias apósdecisão de investigar

Os jornais de dois de março de 2002 anunciaram as prisões da Polícia Federal das quais o delegado José Pinto de Luna participou -- os sequestradores Itamar Messias dos Santos, o Olho de Gato, e Rodolfo Rodrigo dos Santos, o Bozinho. O Diário do Grande ABC abriu o título principal da página 5 do Caderno Grande ABC: "Presos mais dois no caso Celso". O Estadão abriu o Caderno Cidades com "PF prende Itamar, acusado de matar Daniel". A Folha de S. Paulo preferiu o título principal do Caderno Cotidiano com uma inflexão: Daniel foi pego por acaso, dizem suspeitos".

Quarenta dias separam aquelas manchetes de dois de março e a decisão do presidente Fernando Henrique Cardoso de colocar a Polícia Federal no caso Celso Daniel. Celso Daniel ainda estava sequestrado no sábado, 19 de fevereiro, quando FHC determinou que a PF fosse acionada para ajudar nas investigações. A orientação foi feita ao ministro da Justiça Aloysio Nunes Ferreira, que viajou a São Paulo para acompanhar de perto a ação da Polícia.

Já na tarde daquele sábado do sequestro o delegado Gilberto Tadeu, assessor de Imprensa da PF, afirmava que as primeiras investigações praticamente descartavam a hipótese de crime político. "As informações apontam para um crime de oportunidade"-- disse. Era de interesse do governo federal e também do governo estadual, tucanos, amenizar as primeiras críticas do PT ao quadro de debilidade da segurança pública na Grande São Paulo.

Então candidato potencial à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva manteve contatos com Fernando Henrique Cardoso, quando tomou conhecimento das medidas adotadas pelo governo federal para investigar o sequestro e manifestou preocupação com atentados sofridos por integrantes do PT. Lula citou dois episódios: o assassinato do prefeito de Campinas, Antonio Toninho da Costa Santos, e a explosão de uma bomba na casa do prefeito de Embu, Geraldo Cruz.

A politização do sequestro de Celso Daniel pelo PT saltou para as páginas de jornais e para o noticiário da mídia eletrônica no mesmo sábado em que não se sabia o destino do prefeito. A então prefeita petista de São Paulo, Marta Suplicy, estava indignada: "A Capital chegou ao limite de tolerar, de conviver com essa onda de violência e sequestro. Providências mais sérias têm de ser tomadas. O governador Geraldo Alckmin tem de agir. Ninguém aguenta mais" -- desabafou Marta no Paço Municipal de Santo André num começo de ano que programava eleições governamentais e presidenciais para outubro.

Dois dias depois do crime, jornais abriram manchetes para o que chamavam de crise da segurança pública. Tanto que Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva mantiveram encontro em Brasília. Os jornais do dia seguinte estamparam fotos do aperto de mãos. O gesto definia a concordância de que o combate ao crime organizado só seria eficaz com ações coordenadas dos três níveis de governo: federal, estadual e municipal. "O combate à violência está acima de questões partidárias" -- disse o presidente FHC.

Na sexta-feira, 25 de janeiro de 2002, o governador Geraldo Alckmin ocupou os jornais para se defender da avalanche de críticas, principalmente petistas, à insolvência da segurança pública no Estado. "Precisamos agir na questão social, senão a Polícia vai ficar enxugando gelo", disse Alckmin. E recorreu a uma frase do papa Paulo VI, em 1967, para sugerir a saída: "Sem desenvolvimento econômico não há paz".

A dupla de sequestradores presa pela Polícia Federal no começo de março de 2002 voltava de Camaçari, na Bahia. Itamar Monstro e Bozinho viajavam em um ônibus na Via Dutra quando foram surpreendidos pela Polícia na parada do veículo em um restaurante de um posto de combustível em Aparecida (167 quilômetros de São Paulo).

Os primeiros tempos de investigações da Polícia Federal e da Polícia Civil foram marcados por hostilidade. Dirigentes petistas chegaram a denunciar arbitrariedades. Vazamento de informações à Imprensa acabaram por contaminar as relações entre Polícias e PT, principalmente porque associava-se Sérgio Gomes da Silva e suposto esquema de desvios de recursos da Prefeitura de Santo André ao assassinato do prefeito. Mais tarde se soube que eram os promotores públicos que informavam a mídia sobre a possibilidade de crime encomendado.

Ironicamente, tanto a Polícia Federal quanto a Polícia Civil de São Paulo, ainda durante os governos federal e estadual do PSDB, acabaram por concluir pela ocasionalidade do crime.

Menos o Ministério Público de Santo André que, por determinação do então Procurador-Geral da Justiça, Luiz Antônio Guimarães Marrey, mandou reabrir as investigações e retirou Sérgio Gomes da Silva da condição de vítima para mandante do crime. Marrey virou secretário de Negócios Jurídicos do prefeito José Serra, derrotado nas eleições presidenciais de 2002.


* Matéria publicada na edição de abril da revista Livre Mercado


** DANIEL LIMA é jornalista, escritor ("Complexo de Gata Borralheira", "Meias Verdades" e "República Republiqueta") , fundador e diretor-editorial da revista LivreMercado (com circulação há 16 anos no Grande ABC), criador e coordenador-geral do Prêmio Desempenho (há 13 anos realizado no Grande ABC com auditoria externa das planilhas dos concorrentes) e fundador do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos), laboratório virtual que contempla dados sociais, econômicos, financeiros e criminais dos principais municípios paulistas. Atuou em várias publicações antes de criar a revista LivreMercado.

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