É mais fácil esculachar
Brasil
Fernando Soares CamposLa Insignia. Brasil, abril de 2006.
Quando cheguei ao Rio de Janeiro, há muitos anos, vindo lá do Nordeste, logo me dei conta do espírito humorístico dos cariocas, das suas brincadeiras, das gozações desse povo naturalmente caçoísta, tanto quanto o povo de minha terra. Foi quando observei que as pessoas gostavam de conversar comigo por vários motivos, mas principalmente porque achavam engraçado o meu jeito de falar, o meu sotaque e os diversos termos que eu usava. Nunca esqueço do meu primeiro "oxente!" pronunciado em público, aqui no Rio. Somente muito tempo depois foi que entendi por que, quando o proferi, atraí a atenção de um grupo, numa festa de aniversário. A partir daquele momento, todos queriam conversar comigo. Daí em diante, tudo que eu falava era motivo de riso, brincadeiras e alimentava ainda mais a animada roda de bate-papo. E eu lá, aos 19 anos de idade, centro das atenções, crente que estava abafando, como a gente se sentia na época. Lembro até que ainda usava alguns termos considerados arcaicos, como, por exemplo, "vindouro". Enquanto um carioca dizia "semana que vem", eu dizia "semana vindoura", e aquilo, pra eles, era uma preciosidade!
Por que tomo a defesa do presidente Lula em relação a algumas frases que ele andou proferindo e que repercutiu de forma tão negativa na mídia? Certamente porque sei que interpretações ao pé da letra, em outras regiões do nosso país, daquilo que diz um nordestino de modesta educação formal (formal) podem gerar uma certa e compreensível confusão. Muita gente poderia alegar que o presidente Lula viveu muito mais tempo em São Paulo que no Nordeste. Podem ainda dizer que ele chegou ao "Sul Maravilha" quando esta expressão ainda nem havia sido cunhada pelo Henfil. Mas os nordestinos, como tantos outros migrantes internos e imigrantes, mantêm hábitos, costumes e traços peculiares que, como todos nós sabemos, passam de geração a geração. Hábitos alimentares e indumentários, rituais religiosos, gestos, acentos de sotaque, termos e expressões de suas origens. Tenho um primo que mora aqui no Rio há quase cinqüenta anos, e quem conversar com ele, hoje, pode imaginar que o "paraíba" chegou ontem do Nordeste. Seus filhos, e até alguns netos, todos cariocas, manifestam determinadas características próprias dos nordestinos. Acho que esta é uma das mais importantes heranças que ele deixará aos seus descendentes, depois da educação moral e ética que lhes transmitiu.
Por ser nordestino, sei o que o presidente Lula quis dizer, por exemplo, quando declarou: "Ler é pior que fazer exercício em esteira". Ao pronunciar tal frase, com a melhor das intenções, alguns setores da imprensa fizeram o maior alvoroço. Achavam que o presidente havia dito que preferia fazer exercícios numa esteira. Intelectuais de todos os credos escreveram indignados artigos. Alguns diziam até que o presidente estava fazendo apologia à ignorância. E eu imagino como se sente o presidente quando lê esse tipo de crítica nas revistas e jornais, ou quando delas toma conhecimento assistindo aos telejornais. São feitas, geralmente, em tom galhofeiro. São escárnios que pretendem se passar por perspicacíssimas crônicas.
"Pior", lá no meu Nordeste, em diversos contextos, tem sentido de "mais difícil". Há anos, quando aqui cheguei, eu teria dito coisas assim: "Ler é pior (mais difícil) que fazer esteira", ou seja, estaria empregando o termo "pior" no lugar da expressão "mais difícil". E aí pergunto: o que você acha? Ler é mais difícil que fazer esteira? Claro que sim, pois fazer esteira, passar um bom tempo caminhando de lugar algum para nenhum lugar não exige esforço intelectual. Ler, por exemplo, um texto acadêmico, aí é que se torna pior... quer dizer, mais difícil que caminhar sobre uma esteira rolante. Fazer exercícios em esteira é melhor ("mais fácil", pois também usamos "melhor" com este sentido) do que ler. Concorda? Fazer exercícios numa esteira pode ser "intelectualmente" equiparado a assistir televisão. Isto sim.
Ontem, por indicação de uns amigos meus, encontrei, em dezenas de blogs e sites, um texto intitulado "Presidente, vá se danar", de autoria de Adriana Vandoni Curvo, professora, especializada na Fundação Getúlio Vargas, pós-graduada em Gestão de Cidades. O artigo foi publicado no jornal A Gazeta (impresso), Mato Grosso, no dia 24 de julho de 2005, edição 5046. Em "Presidente, vá se danar", Adriana Vandoni Curvo afirma que o presidente Lula teria dito que "tem mais moral e ética que qualquer um aqui neste país".
A verdade é que, certa ocasião, o presidente falou e, dias depois, reiterou: " Ninguém tem mais autoridade moral e ética do que eu", frase que qualquer cidadão, imbuído de senso moral e princípios éticos, diria, como eu o digo: "Ninguém tem mais autoridade moral e ética do que eu". Posso encontrar milhões de pessoas que tenham esta autoridade em igualdade de condições, em igual teor, porém não conheço quem tenha mais autoridade moral e ética do que eu. Como também não conheço quem tenha essa autoridade mais que o presidente Lula.
A professora distorceu as palavras do presidente e ainda se sentiu no direito de, com essa espécie de calemburgo infame, mandar o presidente se danar. Quanta baixaria! Não tem vergonha de fazer um troço desses, professora Adriana? A senhora que deveria ser um exemplo para os seus filhos e alunos, faz um trocadilho tão asqueroso. A não ser que a senhora prove que as duas frases são a mesma coisa, ou que não havia notado a diferença.
Veja, professora, repita comigo e anote aí no quadro negro:
Frase 1: Tenho mais moral e ética que qualquer um neste país.
Frase 2: Ninguém tem mais autoridade moral e ética do que eu.
Viu? Notou a diferença? Não?! Então explico:
No primeiro caso, professora, eu estaria determinando que sou o máximo, isoladamente, que sou único! Seria um delírio, como a senhora pretende que o presidente tenha tido.
No segundo caso, o presidente Lula e milhões de pessoas (entre estas, eu) podem pronunciar a frase, sem qualquer constrangimento. Não sei se a senhora também poderia, pois quem fez o que a senhora fez, das duas uma: ou o fez de má-fé, ou ingenuamente, por não ter interpretado corretamente uma frase tão simples.
A senhora, que tanto leu, tanto estudou, tantos diplomas exibe, não soube interpretar uma frase tão simples, professora?! Não soube, ou, propositadamente, distorceu a frase do presidente Lula, atitude que excluiria a senhora da possibilidade de ser uma dessas pessoas que poderiam dizer: "Ninguém tem mais autoridade moral ética que eu", pois a senhora feriu a moral e a ética dos que devem preservá-las quando escrevem para o público.
A senhora me disse, numa resposta automática do seu endereço eletrônico: "Este artigo não foi enviado ao presidente Lula, até porque, ele já declarou diversas vezes que ler é pior que fazer esteira... e tem outra, será que se ele lesse, entenderia?" Bom, eu também lhe pergunto: a senhora saberia andar na esteira sem qualquer problema? Creio que sim. Mas deve ter dificuldade em relação ao que lê ou ouve, não é mesmo? E agora, entendeu por que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que "Ler é pior (mais difícil) que fazer exercício em esteira"?
Professora, o presidente Lula e eu, em determinado momento histórico do nosso país, saciamos nossa fome de saber no mesmo banquete literário: o velho Pasquim, jornal que fez história na imprensa nacional. Foram mais de 20 anos de resistência à ditadura militar, com humor e os melhores articulistas que conheci. Alguns em plena atividade; outros, lá em cima, assistindo a essa patifaria que a imprensa faz hoje em nosso país, aceitando publicar um artigo estúpido como o seu. Confira o time do velho Pasca: Ziraldo, Jaguar, Millôr Fernandes, Ivan Lessa (BBC-Londres), Sérgio Augusto, Alberto Dines (Observatório da Imprensa), Chico Buarque, Antonio Callado e tantos outros. Dentre estes "outros", Fausto Wolff, atualmente colunista do Jornal do Brasil e colaborador de La Insígnia. O Fausto, à época, era o preferido do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva (conforme ele declarou), hoje presidente da República Federativa do Brasil.
Mas, professora, aqui pra nós: poderia nos dizer quem tem mais autoridade moral e ética que a senhora? Não vá dizer que é aquela turma da pesada que anda cuspindo ódio lá no Senado.
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