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Bel
O COMENDADOR E OS TUCANOS
As ligações entre o senador Antero Paes de Barros, o ex-governador Dante de Oliveira e o bicheiro João Arcanjo
Por Leandro Fortes, de Cuiabá
Na quarta-feira 8, a assessoria de imprensa do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) distribuiu um texto intitulado Velhacos e Bestalhões. O documento, um arrazoado de divagações e clichês sobre o governo do PT, conclama o Ministério Público Federal a uma “ação efetiva” contra o que o parlamentar chama de “desrespeito à lei eleitoral”, no caso, a declaração do presidente Lula de que todo político faz campanha eleitoral 365 dias por ano. Trata-se de uma relação dúbia do senador com o Ministério Público. Ao mesmo tempo em que urge providências na esfera federal, Antero vocifera contra outra ação do MP a nível estadual. Tem lá seus motivos.
Um inquérito aberto há pouco mais de dois anos pela Polícia Federal do Mato Grosso investiga as estranhas e lucrativas ligações da cúpula do PSDB regional com o crime organizado local. Não se trata, diga-se de passagem, de uma organização qualquer. O chefe da quadrilha é o banqueiro do jogo de bicho João Arcanjo Ribeiro, o Comendador, acusado de ter ordenado o assassinato de mais de 30 pessoas em Mato Grosso, e o espancamento e mutilação de pelo menos outras 50. Entre 1994 e 2002, diversas empresas ilegais de factoring (empresas que antecipam dinheiro de cheques pré-datados) montadas por Arcanjo serviram para irrigar dinheiro em campanhas eleitorais do PSDB. Apenas na campanha a governador de Antero Paes de Barros, em 2002, foram encontrados 84 cheques de uma factoring do bicheiro no valor total de 240 mil reais.
O assunto, obviamente, transtorna o senador. Em 16 de fevereiro, Antero teve um ataque de nervos em plena CPI dos Bingos, justamente quando era ouvido o juiz Julier Sebastião da Silva, titular da 1ª Vara Criminal da Justiça Federal de Mato Grosso. Convidado pela comissão, Julier teve pouco tempo para explicar o que tem feito em Cuiabá. Na capital mato-grossense, com a ajuda dos procuradores da República Pedro Taques e Mário Lúcio de Avelar, o juiz desmantelou o império de Arcanjo e desnudou as relações do bicheiro com o ex-governador tucano Dante de Oliveira, o senador Antero, o comitê financeiro do PSDB, deputados estaduais e gente graúda da administração estadual.
“Mentiroso, mentiroso!”, berrava Antero Paes de Barros no plenário da CPI dos Bingos, irritado com a explanação constrangedoramente simples dada pelo juiz Julier da Silva, a quem o senador prometeu processar. Aos senadores da comissão, ele disse apenas que dava seqüência jurídica ao processo com base nas provas anexadas aos autos, todas obtidas em ações de busca e apreensão realizadas pela Polícia Federal. Sem saber, procuradores e policiais federais abriram uma Caixa de Pandora de onde saltaram transações de quase 1 bilhão de reais banhados com sangue.
A primeira descoberta dos investigadores foi que, a partir de 1994, a Assembléia Legislativa de Mato Grosso colocou 81 milhões de reais em factorings do Comendador. Essa dinheirama foi transferida para as mãos de João Arcanjo Ribeiro, graças a uma ação direta do governo Dante de Oliveira. Ainda no governo do tucano, o Departamento de Viação e Obras Públicas de Mato Grosso depositou nas contas das empresas do bicheiro outros 9 milhões de reais.
O Ministério Público descobriu, ainda, que o ex-secretário de Segurança Pública do estado, Hilário Mozer Neto, nomeado por Dante, depositou 1,5 milhão de reais nos cofres de Arcanjo. Não bastasse isso, Mozer Neto, soube-se em seguida, era presidente da empresa offshore Gamza S.A., localizada no Uruguai, o mais importante paraíso fiscal ao sul do Equador. A Gamza, com capital social de 16 milhões de dólares (ou 34,7 milhões de reais), é de propriedade do Comendador.
Também se descobriu, ao longo das investigações, que uma empresa, a Amper – Construções Elétricas Ltda., movimentou mais de 6 milhões de dólares (13 milhões de reais), entre créditos e débitos, na factoring uruguaia de Comendador. Além disso, a Amper foi beneficiária de empréstimos fraudulentos obtidos no Uruguai junto à outra offshore do bicheiro, a Aveyron S.A., ponta-de-lança do esquema de lavagem de dinheiro do crime organizado mato-grossense. Detalhe importante: o dono da Amper chama-se Armando Martins, e vem a ser irmão do ex-governador Dante Martins de Oliveira.
Os cheques da Vip Factoring colocados nas contas do PSDB foram descobertos a partir de um laudo preparado pela Polícia Federal. As informações estavam dentro de um computador apreendido pelos agentes na sede da empresa do Comendador, em Cuiabá. No disco rígido da máquina estavam todas as operações da empresa do bicheiro com o denominado “comitê financeiro único estadual do PSDB”. Os cheques encontrados, 240 mil reais ao todo, eram de doadores da campanha do senador Antero Paes de Barros à sucessão de Dante de Oliveira, este candidato ao Senado. Ambos, aliás, foram derrotados.
O delegado Eliomar da Silva Pereira é o presidente do inquérito que investiga, na Polícia Federal, as ligações do PSDB com o crime organizado em Mato Grosso. Até hoje, ele ouviu apenas um envolvido, Paulo Ronan Ferraz Santos, presidente do comitê financeiro estadual do partido. Ao policial, Ronan afirmou que os 240 mil reais descobertos nas contas da campanha de Antero fazem parte de outros 750 mil reais arrecadados por ele em um jantar de adesão com empresários do estado. Os doadores teriam pago para ouvir um certo Luiz Martins, “consultor” de investimentos de Mato Grosso.
Eliomar Pereira não sabe o que foi feito com o resto do dinheiro, nem tem planos para ouvir o senador Antero Paes de Barros e o ex-governador Dante de Oliveira. Na sala onde trabalha, estão sete caixas de documentos, centenas de disquetes e outras dezenas de HDs de computadores das factorings de Arcanjo. Boa parte do material ainda precisa ser periciada. Quanto ao senador, ele afirma que vai ouvi-lo quando encerrar todas as perícias. Em relação a Dante, o delegado está equivocado. Acredita existir uma decisão judicial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que o impede de investigar o ex-governador e acessar as provas colhidas contra ele. “Por enquanto, não posso mexer em nada que diga respeito ao ex-governador”, garante. Na verdade, o STJ rejeitou uma reclamação nesse sentido de Dante, em novembro de 2005. O tucano queria foro especial em Brasília, longe dos olhos do juiz Julier Sebastião da Silva. CartaCapital /não conseguiu localizar Dante por meio do número de telefone fornecido pela PF.
Juiz federal há 11 anos, Julier vive sob proteção policial desde que remexeu no baú de maldades de José Arcanjo Ribeiro. Na sessão da CPI dos Bingos, realizada em fevereiro, foi praticamente impedido de falar, além de ter sido acusado por Antero Paes de Barros de ter montado a acusação porque era do PT. De fato, Julier foi militante do movimento estudantil pelo partido, na Universidade Federal de Mato Grosso, no fim dos anos 80. Desfiliou-se em 1995, quando se tornou juiz federal, uns poucos anos depois de outro companheiro petista e mato-grossense. O próprio Antero Paes de Barros. O senador, atual antipetista de carteirinha, foi deputado federal constituinte pelo PT, ao lado de Lula, entre 1986 e 1990.
Julier garante nunca ter sido incomodado pessoalmente, nem por tucanos, nem por bandidos do crime organizado local. Mas por causa de um plano de assassinato descoberto pela PF, vive, há dois anos, dentro de um aparato que inclui agentes federais e da Polícia Militar. “Não dá para brincar”, avalia. Ainda assim, não desiste da investigação e garante que superar o medo é parte do trabalho de quem, em nome do Estado, tem de tomar decisões. “Não tem jeito, só sei fazer isto: ser juiz”.
Segundo ele, a participação na CPI dos Bingos, no mês passado, foi “um teatro” montado para partidarizar, deliberadamente, a discussão. “Aquilo foi montado para o senador se defender, mas fiquei quieto, porque estava na condição de convidado, e os fatos falam por si mesmos”, diz. Mesmo sob ataque, preferiu não comprar a briga. “Não perco a paciência nem me meto em falsas polêmicas”, avisa. Segundo ele, não há paixão nem muito menos interferência política nas acusações. “Qualquer um que lê os autos e a sentença de condenação de Arcanjo pode entender isso.”
O procurador Pedro Taques, atualmente lotado na Procuradoria Regional de São Paulo, também estava na CPI dos Bingos, ao lado do juiz Julier, quando o senador Antero Paes de Barros disparou contra as investigações. Taques, um dos procuradores mais atuantes do País contra o crime organizado, já havia falado duas vezes na comissão, sempre sobre o problema de bingos e sempre de forma genérica. Naquela ocasião, queria discorrer sobre as ligações de Arcanjo com o PSDB. Não teve tempo. Por causa do barraco armado por tucanos e governistas, o presidente da CPI, Efraim Morais (PFL-PB), encerrou precocemente a sessão.
Pedro Taques foi convidado a voltar a Brasília, mas não sabe ainda quando será chamado, uma vez que a CPI do Bingo teve os trabalhos prorrogados por mais 60 dias. Espera, desta vez, ter chance de falar sobre as investigações. “Não adianta partidarizar a questão, porque os elementos de prova são todos técnicos”, diz Taques. “O Ministério Público não é nem oposição, nem situação – é Constituição.” O procurador não quer somente mostrar as ligações entre o poder público e o crime organizado em Mato Grosso, mas demonstrar, também, como se processou a degradação decorrente dessa associação na sociedade mato-grossense.
Para se entender o que Taques quer dizer, é preciso compreender, antes, o perfil de João Arcanjo Ribeiro, um sociopata nascido em Luziânia (GO) que, em duas décadas, foi da condição de humilde policial civil a chefe de uma das maiores e mais violentas organizações criminosas do País. Banqueiro do jogo do bicho no início dos anos 80, foi só a partir de 1994, no primeiro governo de Dante de Oliveira, que Arcanjo começou a fazer negócios com factorings dentro da administração estadual. Antes, dominava o mercado de caça-níqueis e mantinha um concorrido cassino ilegal próximo a Cuiabá, o Estância 21.
Em pouco tempo, Arcanjo passou a dominar o mercado financeiro local, a ponto de, ilegalmente, transformar as empresas em bancos informais acessados e distribuídos por todo o estado. Pelos cálculos da Polícia Federal, entre 1994 e 2002, de 30% a 40% de todo o dinheiro de Mato Grosso circulou pelas contas do bicheiro. Cobrava juros menores, mas era um cobrador implacável. Para garantir os pagamentos, contratou torturadores da Polícia Civil e Militar, além de pistoleiros. O grupo quebrava as pernas e braços dos devedores, estuprava familiares e, em último caso, apelava para assassinatos à luz do dia, em ruas movimentadas de Cuiabá, apenas à guisa de exemplo.
Foi nesse período que José Arcanjo, já influente no estado, foi agraciado com duas comendas, uma da Assembléia Legislativa, outra da Câmara de Vereadores – esta cassada em 2005. A que foi concedida pelos deputados estaduais ainda permanece válida. Tornou-se, a partir de então, cidadão emérito de Cuiabá, ocasião em que ganhou o pomposo apelido de “Comendador”. Passou a agir, depois disso, como caricatura de mafioso siciliano. Na igreja, aonde ia todos os domingos, rezava cercado de capangas. Nos restaurantes que freqüentava, chegava ao ponto de interditar o banheiro aos demais clientes, para poder, tranqüilamente, ocupá-lo sozinho. Em outra ocasião, mandou matar um desafeto, mas fez questão de manter o conforto da viúva, a quem deu um apartamento e garantiu o pagamento da taxa de condomínio do imóvel.
Luiz Alberto Dondo Gonçalvez, contador das empresas de Arcanjo, foi a chave para o juiz Julier da Silva e o procurador Pedro Taques desvendarem alguns dos mecanismos utilizados pelo Comendador em suas negociatas em Mato Grosso. Em depoimento à Justiça Federal, ele revelou que uma das factorings do bicheiro, a Confiança, teria feito empréstimos ao Grupo de Comunicação Gazeta, de Cuiabá, para custear a campanha de Antero Paes de Barros, em 2002. O “empréstimo” de 5,7 milhões de reais teria sido intermediado pela Vip Factoring, também com auxílio de outro colaborador de Comendador, o gerente financeiro-Nilson Roberto Teixeira.
A quebra dos sigilos de Dorileo Leal, dono do Grupo Gazeta (um jornal, rádios e a emissora de TV afiliada da Record em Mato Grosso) revelou depósitos de 2,5 milhões de reais, em agosto de 2002, sem qualquer justificativa de prestação de serviço. O relatório entregue à Justiça Federal foi feito pelo Banco Central e cobre, justamente, o período mais crítico da eleição estadual. Envolve três factorings de Arcanjo: Confiança, Vip e Mundial.
O assassinato do jornalista Sávio Brandão Lima Júnior, em 30 de setembro de 2002, com vários tiros na cabeça, foi a gota d’água, mas as investigações começaram antes. Brandão, dono da Folha do Estado, teria fornecido informações sobre Arcanjo para jornalistas de fora do Mato Grosso e suscitado a fúria do bicheiro. O juiz Julier decretou a prisão temporária de Comendador em 2 de dezembro de 2004. Em seguida, foram expedidos mandados de busca e apreensão para dar suporte à Operação Arca de Noé, da PF, em 5 de dezembro.
João Arcanjo fugiu para o Uruguai, juntamente com a segunda mulher, Sílvia Shirato, manicure da primeira esposa do Comendador. Acabou preso pela Justiça uruguaia, após ter sido condenado, no Brasil, a 37 anos de cadeia por crimes contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro, delitos tributários e formação de quadrilha. Responde, ainda, por mando de homicídios na Justiça de Mato Grosso. A mulher, Sílvia, foi condenada a 25 anos de cadeia por lavagem de dinheiro. Mas como esse crime não é tipificado no Uruguai, não corre o risco de ser extraditada.
A extradição do Comendador, no entanto, já está decidida. Faltam apenas trâmites burocráticos. Julier da Silva e Pedro Taques defendem a transferência dele para o presídio Pascoal Ramos, em Cuiabá. Isso porque Arcanjo terá de comparecer a diversas audiências na Justiça comum, por conta das acusações de assassinato, e, mais tarde, levado a júri popular na capital mato-grossense.
Mas a Polícia Federal prefere levá-lo para Brasília até que o presídio federal de Campo Grande (MS) fique pronto, com previsão para novembro deste ano. Os delegados envolvidos nos inquéritos acham arriscado mantê-lo no presídio de Cuiabá, de onde um dos matadores do Comendador chegou a fugir pela porta da frente. A PF se dispôs a garantir o traslado do bicheiro para Mato Grosso toda vez que se fizer necessário.
Ao todo, 11 inquéritos foram abertos por conta da Operação Arca de Noé, mas ainda é preciso avaliar toda a documentação liberada pela Justiça do Uruguai. A PF está debruçada, agora, no que chama de “conexão americana”, alusão a um hotel comprado por Arcanjo em Orlando, na Flórida (EUA). O Comendador tem um patrimônio a descoberto, ou seja, jamais notificado à Receita Federal, de mais de 800 milhões de reais no País, além de outros 40 milhões de dólares no Uruguai. “Pode ter muito mais no exterior, mas temos muita dificuldade de conseguir informações nos paraísos fiscais”, diz o delegado Aldair da Rocha, superintendente da PF em Mato Grosso. Ele lembra que, no Uruguai, por exemplo, não é possível identificar os nomes dos donos das empresas após mudanças societárias. Então, basta colocar laranjas para abrir a offshore e, em seguida, mudar o nome dos sócios.
Procurado por CartaCapital, o senador Antero Paes de Barros solicitou que as perguntas da revista fossem feitas via e-mail. Sobre as ligações com José Arcanjo, disse apenas que conhecia o Comendador “como todos em Cuiabá”, mas que jamais teve relações sociais e nem de negócios com ele. Segundo Antero, as acusações contra ele são “uma grande farsa”. Ele acusa o juiz Julier de ter usado os documentos apreendidos pela PF para invadir a sede do PSDB em Cuiabá e, assim, ajudar o candidato do PT a governador, Alexandre César, nas eleições de 2002.
Antero garante que os cheques, no total de 240 mil reais, arrecadados pelo comitê financeiro do PSDB, foram trocados na Vip Factoring por meio de uma operação de fomento mercantil – operação esta feita, diz o senador, sem o conhecimento dele. Ainda assim, garante, toda a transação foi declarada na prestação de contas ao Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso. “Não houve doação de Arcanjo e de suas empresas à campanha do PSDB”, afirma.
Clique abaixo e confira: O Ministério Público e a Justiça Federal não têm dúvidas da ligação dos tucanos com a máfia
Bel
O COMENDADOR E OS TUCANOS
As ligações entre o senador Antero Paes de Barros, o ex-governador Dante de Oliveira e o bicheiro João Arcanjo
Por Leandro Fortes, de Cuiabá
Na quarta-feira 8, a assessoria de imprensa do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) distribuiu um texto intitulado Velhacos e Bestalhões. O documento, um arrazoado de divagações e clichês sobre o governo do PT, conclama o Ministério Público Federal a uma “ação efetiva” contra o que o parlamentar chama de “desrespeito à lei eleitoral”, no caso, a declaração do presidente Lula de que todo político faz campanha eleitoral 365 dias por ano. Trata-se de uma relação dúbia do senador com o Ministério Público. Ao mesmo tempo em que urge providências na esfera federal, Antero vocifera contra outra ação do MP a nível estadual. Tem lá seus motivos.
Um inquérito aberto há pouco mais de dois anos pela Polícia Federal do Mato Grosso investiga as estranhas e lucrativas ligações da cúpula do PSDB regional com o crime organizado local. Não se trata, diga-se de passagem, de uma organização qualquer. O chefe da quadrilha é o banqueiro do jogo de bicho João Arcanjo Ribeiro, o Comendador, acusado de ter ordenado o assassinato de mais de 30 pessoas em Mato Grosso, e o espancamento e mutilação de pelo menos outras 50. Entre 1994 e 2002, diversas empresas ilegais de factoring (empresas que antecipam dinheiro de cheques pré-datados) montadas por Arcanjo serviram para irrigar dinheiro em campanhas eleitorais do PSDB. Apenas na campanha a governador de Antero Paes de Barros, em 2002, foram encontrados 84 cheques de uma factoring do bicheiro no valor total de 240 mil reais.
O assunto, obviamente, transtorna o senador. Em 16 de fevereiro, Antero teve um ataque de nervos em plena CPI dos Bingos, justamente quando era ouvido o juiz Julier Sebastião da Silva, titular da 1ª Vara Criminal da Justiça Federal de Mato Grosso. Convidado pela comissão, Julier teve pouco tempo para explicar o que tem feito em Cuiabá. Na capital mato-grossense, com a ajuda dos procuradores da República Pedro Taques e Mário Lúcio de Avelar, o juiz desmantelou o império de Arcanjo e desnudou as relações do bicheiro com o ex-governador tucano Dante de Oliveira, o senador Antero, o comitê financeiro do PSDB, deputados estaduais e gente graúda da administração estadual.
“Mentiroso, mentiroso!”, berrava Antero Paes de Barros no plenário da CPI dos Bingos, irritado com a explanação constrangedoramente simples dada pelo juiz Julier da Silva, a quem o senador prometeu processar. Aos senadores da comissão, ele disse apenas que dava seqüência jurídica ao processo com base nas provas anexadas aos autos, todas obtidas em ações de busca e apreensão realizadas pela Polícia Federal. Sem saber, procuradores e policiais federais abriram uma Caixa de Pandora de onde saltaram transações de quase 1 bilhão de reais banhados com sangue.
A primeira descoberta dos investigadores foi que, a partir de 1994, a Assembléia Legislativa de Mato Grosso colocou 81 milhões de reais em factorings do Comendador. Essa dinheirama foi transferida para as mãos de João Arcanjo Ribeiro, graças a uma ação direta do governo Dante de Oliveira. Ainda no governo do tucano, o Departamento de Viação e Obras Públicas de Mato Grosso depositou nas contas das empresas do bicheiro outros 9 milhões de reais.
O Ministério Público descobriu, ainda, que o ex-secretário de Segurança Pública do estado, Hilário Mozer Neto, nomeado por Dante, depositou 1,5 milhão de reais nos cofres de Arcanjo. Não bastasse isso, Mozer Neto, soube-se em seguida, era presidente da empresa offshore Gamza S.A., localizada no Uruguai, o mais importante paraíso fiscal ao sul do Equador. A Gamza, com capital social de 16 milhões de dólares (ou 34,7 milhões de reais), é de propriedade do Comendador.
Também se descobriu, ao longo das investigações, que uma empresa, a Amper – Construções Elétricas Ltda., movimentou mais de 6 milhões de dólares (13 milhões de reais), entre créditos e débitos, na factoring uruguaia de Comendador. Além disso, a Amper foi beneficiária de empréstimos fraudulentos obtidos no Uruguai junto à outra offshore do bicheiro, a Aveyron S.A., ponta-de-lança do esquema de lavagem de dinheiro do crime organizado mato-grossense. Detalhe importante: o dono da Amper chama-se Armando Martins, e vem a ser irmão do ex-governador Dante Martins de Oliveira.
Os cheques da Vip Factoring colocados nas contas do PSDB foram descobertos a partir de um laudo preparado pela Polícia Federal. As informações estavam dentro de um computador apreendido pelos agentes na sede da empresa do Comendador, em Cuiabá. No disco rígido da máquina estavam todas as operações da empresa do bicheiro com o denominado “comitê financeiro único estadual do PSDB”. Os cheques encontrados, 240 mil reais ao todo, eram de doadores da campanha do senador Antero Paes de Barros à sucessão de Dante de Oliveira, este candidato ao Senado. Ambos, aliás, foram derrotados.
O delegado Eliomar da Silva Pereira é o presidente do inquérito que investiga, na Polícia Federal, as ligações do PSDB com o crime organizado em Mato Grosso. Até hoje, ele ouviu apenas um envolvido, Paulo Ronan Ferraz Santos, presidente do comitê financeiro estadual do partido. Ao policial, Ronan afirmou que os 240 mil reais descobertos nas contas da campanha de Antero fazem parte de outros 750 mil reais arrecadados por ele em um jantar de adesão com empresários do estado. Os doadores teriam pago para ouvir um certo Luiz Martins, “consultor” de investimentos de Mato Grosso.
Eliomar Pereira não sabe o que foi feito com o resto do dinheiro, nem tem planos para ouvir o senador Antero Paes de Barros e o ex-governador Dante de Oliveira. Na sala onde trabalha, estão sete caixas de documentos, centenas de disquetes e outras dezenas de HDs de computadores das factorings de Arcanjo. Boa parte do material ainda precisa ser periciada. Quanto ao senador, ele afirma que vai ouvi-lo quando encerrar todas as perícias. Em relação a Dante, o delegado está equivocado. Acredita existir uma decisão judicial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que o impede de investigar o ex-governador e acessar as provas colhidas contra ele. “Por enquanto, não posso mexer em nada que diga respeito ao ex-governador”, garante. Na verdade, o STJ rejeitou uma reclamação nesse sentido de Dante, em novembro de 2005. O tucano queria foro especial em Brasília, longe dos olhos do juiz Julier Sebastião da Silva. CartaCapital /não conseguiu localizar Dante por meio do número de telefone fornecido pela PF.
Juiz federal há 11 anos, Julier vive sob proteção policial desde que remexeu no baú de maldades de José Arcanjo Ribeiro. Na sessão da CPI dos Bingos, realizada em fevereiro, foi praticamente impedido de falar, além de ter sido acusado por Antero Paes de Barros de ter montado a acusação porque era do PT. De fato, Julier foi militante do movimento estudantil pelo partido, na Universidade Federal de Mato Grosso, no fim dos anos 80. Desfiliou-se em 1995, quando se tornou juiz federal, uns poucos anos depois de outro companheiro petista e mato-grossense. O próprio Antero Paes de Barros. O senador, atual antipetista de carteirinha, foi deputado federal constituinte pelo PT, ao lado de Lula, entre 1986 e 1990.
Julier garante nunca ter sido incomodado pessoalmente, nem por tucanos, nem por bandidos do crime organizado local. Mas por causa de um plano de assassinato descoberto pela PF, vive, há dois anos, dentro de um aparato que inclui agentes federais e da Polícia Militar. “Não dá para brincar”, avalia. Ainda assim, não desiste da investigação e garante que superar o medo é parte do trabalho de quem, em nome do Estado, tem de tomar decisões. “Não tem jeito, só sei fazer isto: ser juiz”.
Segundo ele, a participação na CPI dos Bingos, no mês passado, foi “um teatro” montado para partidarizar, deliberadamente, a discussão. “Aquilo foi montado para o senador se defender, mas fiquei quieto, porque estava na condição de convidado, e os fatos falam por si mesmos”, diz. Mesmo sob ataque, preferiu não comprar a briga. “Não perco a paciência nem me meto em falsas polêmicas”, avisa. Segundo ele, não há paixão nem muito menos interferência política nas acusações. “Qualquer um que lê os autos e a sentença de condenação de Arcanjo pode entender isso.”
O procurador Pedro Taques, atualmente lotado na Procuradoria Regional de São Paulo, também estava na CPI dos Bingos, ao lado do juiz Julier, quando o senador Antero Paes de Barros disparou contra as investigações. Taques, um dos procuradores mais atuantes do País contra o crime organizado, já havia falado duas vezes na comissão, sempre sobre o problema de bingos e sempre de forma genérica. Naquela ocasião, queria discorrer sobre as ligações de Arcanjo com o PSDB. Não teve tempo. Por causa do barraco armado por tucanos e governistas, o presidente da CPI, Efraim Morais (PFL-PB), encerrou precocemente a sessão.
Pedro Taques foi convidado a voltar a Brasília, mas não sabe ainda quando será chamado, uma vez que a CPI do Bingo teve os trabalhos prorrogados por mais 60 dias. Espera, desta vez, ter chance de falar sobre as investigações. “Não adianta partidarizar a questão, porque os elementos de prova são todos técnicos”, diz Taques. “O Ministério Público não é nem oposição, nem situação – é Constituição.” O procurador não quer somente mostrar as ligações entre o poder público e o crime organizado em Mato Grosso, mas demonstrar, também, como se processou a degradação decorrente dessa associação na sociedade mato-grossense.
Para se entender o que Taques quer dizer, é preciso compreender, antes, o perfil de João Arcanjo Ribeiro, um sociopata nascido em Luziânia (GO) que, em duas décadas, foi da condição de humilde policial civil a chefe de uma das maiores e mais violentas organizações criminosas do País. Banqueiro do jogo do bicho no início dos anos 80, foi só a partir de 1994, no primeiro governo de Dante de Oliveira, que Arcanjo começou a fazer negócios com factorings dentro da administração estadual. Antes, dominava o mercado de caça-níqueis e mantinha um concorrido cassino ilegal próximo a Cuiabá, o Estância 21.
Em pouco tempo, Arcanjo passou a dominar o mercado financeiro local, a ponto de, ilegalmente, transformar as empresas em bancos informais acessados e distribuídos por todo o estado. Pelos cálculos da Polícia Federal, entre 1994 e 2002, de 30% a 40% de todo o dinheiro de Mato Grosso circulou pelas contas do bicheiro. Cobrava juros menores, mas era um cobrador implacável. Para garantir os pagamentos, contratou torturadores da Polícia Civil e Militar, além de pistoleiros. O grupo quebrava as pernas e braços dos devedores, estuprava familiares e, em último caso, apelava para assassinatos à luz do dia, em ruas movimentadas de Cuiabá, apenas à guisa de exemplo.
Foi nesse período que José Arcanjo, já influente no estado, foi agraciado com duas comendas, uma da Assembléia Legislativa, outra da Câmara de Vereadores – esta cassada em 2005. A que foi concedida pelos deputados estaduais ainda permanece válida. Tornou-se, a partir de então, cidadão emérito de Cuiabá, ocasião em que ganhou o pomposo apelido de “Comendador”. Passou a agir, depois disso, como caricatura de mafioso siciliano. Na igreja, aonde ia todos os domingos, rezava cercado de capangas. Nos restaurantes que freqüentava, chegava ao ponto de interditar o banheiro aos demais clientes, para poder, tranqüilamente, ocupá-lo sozinho. Em outra ocasião, mandou matar um desafeto, mas fez questão de manter o conforto da viúva, a quem deu um apartamento e garantiu o pagamento da taxa de condomínio do imóvel.
Luiz Alberto Dondo Gonçalvez, contador das empresas de Arcanjo, foi a chave para o juiz Julier da Silva e o procurador Pedro Taques desvendarem alguns dos mecanismos utilizados pelo Comendador em suas negociatas em Mato Grosso. Em depoimento à Justiça Federal, ele revelou que uma das factorings do bicheiro, a Confiança, teria feito empréstimos ao Grupo de Comunicação Gazeta, de Cuiabá, para custear a campanha de Antero Paes de Barros, em 2002. O “empréstimo” de 5,7 milhões de reais teria sido intermediado pela Vip Factoring, também com auxílio de outro colaborador de Comendador, o gerente financeiro-Nilson Roberto Teixeira.
A quebra dos sigilos de Dorileo Leal, dono do Grupo Gazeta (um jornal, rádios e a emissora de TV afiliada da Record em Mato Grosso) revelou depósitos de 2,5 milhões de reais, em agosto de 2002, sem qualquer justificativa de prestação de serviço. O relatório entregue à Justiça Federal foi feito pelo Banco Central e cobre, justamente, o período mais crítico da eleição estadual. Envolve três factorings de Arcanjo: Confiança, Vip e Mundial.
O assassinato do jornalista Sávio Brandão Lima Júnior, em 30 de setembro de 2002, com vários tiros na cabeça, foi a gota d’água, mas as investigações começaram antes. Brandão, dono da Folha do Estado, teria fornecido informações sobre Arcanjo para jornalistas de fora do Mato Grosso e suscitado a fúria do bicheiro. O juiz Julier decretou a prisão temporária de Comendador em 2 de dezembro de 2004. Em seguida, foram expedidos mandados de busca e apreensão para dar suporte à Operação Arca de Noé, da PF, em 5 de dezembro.
João Arcanjo fugiu para o Uruguai, juntamente com a segunda mulher, Sílvia Shirato, manicure da primeira esposa do Comendador. Acabou preso pela Justiça uruguaia, após ter sido condenado, no Brasil, a 37 anos de cadeia por crimes contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro, delitos tributários e formação de quadrilha. Responde, ainda, por mando de homicídios na Justiça de Mato Grosso. A mulher, Sílvia, foi condenada a 25 anos de cadeia por lavagem de dinheiro. Mas como esse crime não é tipificado no Uruguai, não corre o risco de ser extraditada.
A extradição do Comendador, no entanto, já está decidida. Faltam apenas trâmites burocráticos. Julier da Silva e Pedro Taques defendem a transferência dele para o presídio Pascoal Ramos, em Cuiabá. Isso porque Arcanjo terá de comparecer a diversas audiências na Justiça comum, por conta das acusações de assassinato, e, mais tarde, levado a júri popular na capital mato-grossense.
Mas a Polícia Federal prefere levá-lo para Brasília até que o presídio federal de Campo Grande (MS) fique pronto, com previsão para novembro deste ano. Os delegados envolvidos nos inquéritos acham arriscado mantê-lo no presídio de Cuiabá, de onde um dos matadores do Comendador chegou a fugir pela porta da frente. A PF se dispôs a garantir o traslado do bicheiro para Mato Grosso toda vez que se fizer necessário.
Ao todo, 11 inquéritos foram abertos por conta da Operação Arca de Noé, mas ainda é preciso avaliar toda a documentação liberada pela Justiça do Uruguai. A PF está debruçada, agora, no que chama de “conexão americana”, alusão a um hotel comprado por Arcanjo em Orlando, na Flórida (EUA). O Comendador tem um patrimônio a descoberto, ou seja, jamais notificado à Receita Federal, de mais de 800 milhões de reais no País, além de outros 40 milhões de dólares no Uruguai. “Pode ter muito mais no exterior, mas temos muita dificuldade de conseguir informações nos paraísos fiscais”, diz o delegado Aldair da Rocha, superintendente da PF em Mato Grosso. Ele lembra que, no Uruguai, por exemplo, não é possível identificar os nomes dos donos das empresas após mudanças societárias. Então, basta colocar laranjas para abrir a offshore e, em seguida, mudar o nome dos sócios.
Procurado por CartaCapital, o senador Antero Paes de Barros solicitou que as perguntas da revista fossem feitas via e-mail. Sobre as ligações com José Arcanjo, disse apenas que conhecia o Comendador “como todos em Cuiabá”, mas que jamais teve relações sociais e nem de negócios com ele. Segundo Antero, as acusações contra ele são “uma grande farsa”. Ele acusa o juiz Julier de ter usado os documentos apreendidos pela PF para invadir a sede do PSDB em Cuiabá e, assim, ajudar o candidato do PT a governador, Alexandre César, nas eleições de 2002.
Antero garante que os cheques, no total de 240 mil reais, arrecadados pelo comitê financeiro do PSDB, foram trocados na Vip Factoring por meio de uma operação de fomento mercantil – operação esta feita, diz o senador, sem o conhecimento dele. Ainda assim, garante, toda a transação foi declarada na prestação de contas ao Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso. “Não houve doação de Arcanjo e de suas empresas à campanha do PSDB”, afirma.
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