Saturday, March 11, 2006

Arnaldo Bloch- *O Globo

Seriam os magros uns canalhas?

Há, nos barrigudos, uma imensa, uma inestancável, cordialidade. Eles pingam simpatia como um guarda-chuva encharcado. Ao passo que, por uma funesta coincidência, os canalhas são sempre magros.” A frase de Nelson Rodrigues (que reli outro dia no excelente apanhado de Ruy Castro com mil máximas do anjo pornográfico) perde toda a graça se o leitor apanhá-la ao pé da letra.

Pois, se correspondesse à realidade literal, teríamos, por exemplo, um Betinho (Deus o tenha) cafajeste, e um Adhemar de Barros (o homem do “rouba mas faz”) ilibado, honestíssimo. Marco Maciel (o do perfil invisível) seria o canalha-mor, ao passo que Delfim Netto livrar-se-ia de qualquer sombra que pesasse (e como!) sobre ele. Ronaldo Fenômeno seria o simpático enquanto o Gaúcho cuspiria fel (e todos sabemos que “rogordo e romagro” formam uma dupla do barulho).

Mas o curioso é que, séculos e séculos antes de Nelson, Shakespeare, num diálogo de Júlio César com Marco Antônio, abordaria o assunto:
— Quero homens gordos e de cara lustrosa à minha volta. Ali está Cássio, com um aspecto magro e esfaimado. Pensa demais. Tais homens são perigosos.

De espírito apaziguador, Marco Antônio defende Cássio, dizendo que é um bom romano, um homem honesto. Mas a história mostrará que César estava certo: Cássio era um conspirador e o tempo iria fechar, ou melhor, desfechar, na famosa facada de Brutus — que não era nem magro nem gordo, mas um pulha, isso ninguém discute.

Bom, antes que a patrulha dos corretos se manifeste, vamos esclarecer que essa discussão não inclui o magro que o é por motivo socioeconômico ou por mal de doença glandular, bulimia, anorexia.
Falamos aqui do magro que o é por compleição, por vocação ou por opção, o magro que é “magro de ruim”, como diz a sabedoria popular, em perfeita sintonia, aliás, com Nelson, Júlio e Shakespeare. Falamos também do magro guloso, acusado, com razão, de abusar da capacidade de deglutir o mundo sem que a insidiosa banha-mãe domine seu sangue imune.

Mas falamos, sobretudo, do “magro de alma”, aquele que não engorda por passar as noites consumindo-se (como Cássio) no fogo alto da inveja, na cobiça, nas maquinações, no ódio e na ânsia urgente da traição. A esse magro não há prato que apeteça: como gozar as delícias, os aromas, as texturas, se César está lá, no bem-bom, no alto da carne-seca romana?

Como lamber os beiços se eles estão frios e trêmulos de rancor e despeito? Como lambuzar-se de leite e mel se o estômago revolve-se, faminto de poder? Como embriagar-se do bom vinho se o veneno do espírito já tomou o coração?

Mas o leitor há de perguntar: e os gordos invejosos? E os frustrados, que compensam o pânico do fracasso rendendo-se à compulsão desavergonhada? E os gordos sem caráter, que roubam do povo, ostentam a fartura e humilham, e ofendem, os que nada têm?

Responderei: em todo gordo canalha (eles existem) reside a alma magra de Cássio; a banha canalha é mero disfarce, é espuma cultivada, é a capa do mau filé, é a falsa momice, a vileza convertida em simpatia.

O gordo canalha é o magro dos magros, pois sua fome é infinita, e seu gigantesco estômago flagela-se, dia e noite, em hecatombes gasosas, em lavas escuras que vêm do inferno da bile.
Misturado aos bons gordos, o gordo canalha esconde a ossada de um monstro, magra, torta, em cujo tutano corre o germe da infâmia humana.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home