CARTA AO CHEFE Como a IstoÉ tornou-se IstoEra
OBSERVATORIO DA IMPRENSA 28 MARÇO 2006
Luiz Cláudio Cunha (*)
Mensagem enviada pelo signatário, editor de Política da sucursal de Brasília da IstoÉ, a Carlos José Marques, diretor-editorial da IstoÉ - com cópias para Domingo Alzugaray, diretor responsável da Editora Três, e Alberto Dines, editor responsável deste Observatório. O OI procurou Marques por e-mail, às 19h43 de segunda-feira (27/3), solicitando uma manifestação sua; passadas 24 horas, não obteve resposta. De todo modo, o espaço para sua réplica está garantido. Intertítulos da Redação do OI. (L.E.)
"Jornalismo é a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter." Cláudio Abramo (1923-1987)
Marques, eu não o conheço e, certamente, V. me conhece menos ainda. Sou um devoto da palavra escrita. Minha inspiração é o bravo Churchill, meu conservador predileto, que atravessou as madrugadas de Londres iluminadas pelas bombas da Luftwaffe ditando bilhetes, lapidando discursos memoráveis e escrevendo a História que o faria ganhar a guerra. Como o velho bulldog inglês, estou com a alma angustiada pelo bombardeio da semana passada, que detonou o emprego de dois editores na sucursal, Amaury Ribeiro Jr. e Donizete Arruda e, por conseqüência, do chefe Tales Faria, demitido ao reagir com a dignidade devida à sua injustificada blitzkrieg. Sei que nem bilhete, nem discurso vão apagar este incêndio, mas silenciar agora seria admitir que V. está no caminho da vitória. "Não se ganham guerras com retiradas", advertiu o sábio Winston ao povo inglês, ainda inebriado pelo épico milagroso de Dunquerque. A inglória e enganosa retirada de Brasília marca um atalho perigoso para a derrota. Não se abate impunemente um profissional do talento e da integridade de Tales Faria sem lançar um véu de maus presságios sobre os novos tempos. Sob o comando dele, ao longo de sete anos, a Sucursal de Brasília de ISTOÉ chegou a sete finais de Prêmio Esso - e faturou três, uma delas com o demitido Amaury. O Tales - ao contrário de V., Marques - atende com sobras aos dois paradigmas expressos pelo Cláudio Abramo para esta profissão tão marcada por bombas, retiradas, derrotas, vitórias, dignidade e vilanias.
Com 55 anos de vida e 37 de estrada, já vi muita coisa bonita e muita coisa feia nas redações de jornais e revistas. Com este longo prontuário, sou praticamente uma página virada e, neste aspecto, V. ainda é um noviço no jornalismo. Eu só tenho passado e V., pelo que vejo, só tem futuro, muito futuro. Por isso, não quero perder aqui a chance de discutir não nossas carreiras, com inflexões tão distintas, mas o futuro imediato de algo que preocupa a todos nós: a revista ISTOÉ. Compartilho este debate com outras duas pessoas, e justifico. O Seu Domingo, por ser o interessado direto no futuro de sua revista, condicionado ao perfil e ao conteúdo dos profissionais que vão garantir sua qualidade e sua relevância. E o Dines, por ser o responsável e mentor do Observatório de Imprensa, um espaço nobre e influente na internet dedicado justamente ao objetivo central desta carta: a reflexão, a crítica, o debate maduro e responsável do que pensamos e do que fazemos como jornalistas, desde o mais modesto repórter até o mais poderoso chefão - como V., Marques.
Vivemos tempos muito estranhos, em que as coisas que precisam ser ditas ficam escamoteadas, camufladas, sussurradas, caladas. Nada se reclama, nada se critica, para preservar amigos, cargos, salários, posições, espaços de poder, enquanto o jornalismo vai se diluindo e dissolvendo na sua incapacidade de autocrítica. Não sou de freqüentar boteco, nem de extravasar minhas mágoas em mesa de bar, Marques. Prefiro ganhar a guerra resistindo, pensando e escrevendo. Sem mágoa, nem ressentimento, prefiro escancarar aqui - com a ajuda do Observatório da Imprensa - uma discussão que, na nossa restrita área de influência, ficaria confinada às conversas pouco conclusivas que envolvem só os personagens diretamente interessados - o diretor que demite, o chefe demitido, os editores perplexos, os repórteres confusos, todos nós desorientados e apreensivos com o novo passaralho que vem por aí na semana que vem, no mês seguinte, quem sabe?
Quero quebrar esta caixa preta e propor, com a serenidade recomendável e a prudência necessária, um debate sobre o papel que todos nós temos no empobrecimento continuado de algumas de nossas principais revistas semanais. A crise econômica, o custo do papel, a retração dos anunciantes, a concorrência da TV, o surgimento da internet e outros quesitos geralmente justificam a recorrente onda de enxugamentos nas redações de jornais e revistas, nivelando por baixo salários e profissionais. Esta é uma dura realidade, que não é nova nem parece prestes a acabar. Pelo contrário.
Onde o norte?
Neste quadro recessivo, que inquieta patrões e assusta empregados, é natural o surgimento do "jornalismo de resultado" e seus profetas - os executivos moderninhos que prometem redações baratas, revistas idem, amenidades muitas e reflexão zero. Apostam no padrão do leitor que consome mas não pensa, no perfil Homer Simpson que se satisfaz com o atendimento às suas demandas meramente consumistas, do estilo shopping center que simboliza o templo de devoção da classe média e seus periféricos. Para este tipo de leitor, com tanto a comprar e tão pouca disposição para ler, o jeito é o modelito USA Today, o jornalão fast food destes tempos midiáticos para uma leitura rápida, calórica e saborosa como um Big Mac. Assim, nossas semanais sofrem cada vez mais a tentação de atender a este novo mercado emergente, abdicando de sua função primordial: o texto mais consistente, mais abrangente, para refletir e ponderar sobre a salada de informações frenéticas e redundantes que o dia-a-dia de jornais, rádios, TVs e internet enfia goela abaixo do cidadão.
A revista, que devia ser o oásis de reflexão para ajudar o pobre leitor a atravessar esta overdose semanal de notícias e mais notícias, abdica de seu papel e mergulha no turbilhão do jornalismo rápido e rasteiro. A estética vale mais do que a essência. A forma se impõe ao conteúdo. O texto curto confina os detalhes. A foto, espelhada e escancarada, come os espaços de uma informação cada vez mais estrangulada. Tudo induz uma leitura ligeira, quase leviana, para não afrontar o relógio e a agenda do nosso leitor tão apressado. E, em vez de procurar saciar a fome de informação e conteúdo, a revista sucumbe e se submete à magra dieta jornalística que ela diz ser exigência do leitor moderno. Alguém está enganando alguém neste jogo.
Como a idéia, aqui, é dizer o que precisa ser dito, devo ser franco e direto: a atual ISTOÉ conseguiu, no espaço de poucas semanas, conquistar a merecida pole position no grid da mediocridade nacional. Uma revista, como diria Otto Lara Resende, bonitinha mas ordinária. Das grandes semanais brasileiras, clube que ela sempre integrou com honra e mérito, ISTOÉ hoje se transformou num arremedo da revista instigante, provocativa, inteligente que era. Sob seu tacão, Marques, a revista afundou num mar de futilidades e amenidades, tragada por uma pauta desorientada e açoitada por textos curtinhos de idéias e de talento.
Para uma semanal que já teve em seu timão capitães do porte de Mino Carta, Tão Gomes Pinto, Milton Coelho da Graça e Hélio Campos Mello, seria justo esperar uma travessia e um rumo mais definido. A revista perdeu o norte e corre o sério risco de virar uma publicação fútil e irrelevante, incapaz de arrastar o leitor de sua casa até a banca mais próxima. Leitor só levanta o traseiro do comodismo, como diria o companheiro Lula, atraído pelo furo, pela reportagem bem apurada e bem escrita, pela matéria que faz história, que consola os aflitos e aflige os consolados.
Bicada inexistente.
ISTOÉ, pelo jeito, não quer afligir mais ninguém, principalmente os poderosos. Deve ser por isso que a ISTOÉ desta semana consegue o milagre de produzir uma matéria sobre o caseiro Nildo, aquele que viu as bandalheiras da "República de Ribeirão Preto", sem citar uma única vez o santo nome de Antonio Palocci. E discorre sobre a vergonhosa quebra de sigilo do caseiro omitindo acintosamente o nome do assessor de imprensa Marcelo Netto, um dos suspeitos de envolvimento no crime. Reclamo porque fui eu que escrevi a matéria, e nela constavam os dois nomes - Palocci e Marcelo. Meu texto foi lipoaspirado, desintoxicado dos nomes do ministro e do assessor, e assim publicado. Por isso, recusei assinar a matéria, que não refletia o que o repórter mandou de Brasília na noite de quinta-feira 23 . E nem precisaria tanto drama, porque os nomes da dupla já estavam, desde manhã cedo, nas edições da Folha de S.Paulo e do Correio Braziliense. A revista não estaria fazendo carga contra ninguém, estaria apenas sendo fiel aos fatos. Perdeu uma bela oportunidade de não ficar calada. Até porque, momentos atrás, o Palocci acaba de se demitir, por todos os motivos que tínhamos e não explicitamos.
Ainda bem que a concorrente, a VEJA, cumpriu seu dever direitinho, colocando inclusive uma foto do Marcelo ao lado de seu protegido. Até o colunista Diogo Mainardi, sob o título um tanto explícito de "Marcelo Netto, Marcelo Netto", disse com toda a clareza: "Quem difundiu o extrato bancário do caseiro foi o assessor de imprensa de Palocci, Marcelo Netto. Desde a semana passada, todos os jornalistas sabiam disso. Marcelo Netto é jornalista. E jornalistas não denunciam jornalistas".
Silêncios assim, inexplicáveis, é que incomodam tanta gente que, como o filósofo Millôr Fernandes, acha que jornalismo é oposição - o resto é armazém de secos e molhados. Uma revista semanal com a história de ISTOÉ não pode acabar disputando espaço no cesto de revistinhas de sala de espera de dentista. Ninguém tem o direito de malbaratar o esforço sério de tantos profissionais talentosos, ao longo de tantos anos, que ajudaram a construir o prestígio e a importância de ISTOÉ no jornalismo brasileiro.
Falo isso porque o exemplo que vem de cima é preocupante. Sua estréia na direção da revista, na edição 1894 (de 8 de fevereiro de 2006), foi bombástica: uma entrevista forte de FHC. Título da chamada na capa: "A ética do PT é roubar". Só pra lembrar:
Era uma frase candente, que até destoava um pouco do estilo medido e comedido do elegante doutor honoris causa de Cambridge, Sorbonne e quetais. Por isso, valia o quanto pesava. O PT ficou tão furibundo que anunciou processo na Justiça pela injúria publicada. Mas exatamente um mês depois (8 de março de 2006), Cláudio Humberto publica a seguinte nota em sua coluna, sempre bem informada e comentada:
A dedução que se faz, a partir destes fatos, é que a bicada do tucano-rei simplesmente não existiu. Alguém no comando da revista achou por bem melhorar o que FHC diz, sempre com elegância e na maioria das vezes com propriedade. Ou seja, enxertaram uma frase, dura e agressiva, na conversa gravada de um ex-presidente da República, e tascaram o remendo na capa da revista! Em qualquer publicação séria, isso seria motivo para uma rápida apuração e inapelável demissão. Mas nada aconteceu.
Explicação possível
Podia ter sido um acidente de percurso, algo a ser relevado, travessura que não se repetiria mais. Bola pra frente! Mas eis que, quatro edições seguintes, na ISTOÉ 1898 (de 8 de março de 2006), que tinha como capa a pandemia da gripe aviária, é reservada a entrevista das páginas vermelhas ao ex-governador Anthony Garotinho, candidato dali a dez dias nas prévias do PMDB. E a gripe que deixou bicudo FHC também contaminou o coitado do Garotinho. A assessoria do ex-governador percebeu, com natural perplexidade, que o texto trazia não só respostas não dadas, mas perguntas que não haviam sido feitas, conforme os registros gravados da conversa. Vou reproduzir apenas o trecho que melhor identifica o foco da doença. É o seguinte:
1) TEXTO GRAVADO E TRANSCRITO DA CONVERSA:
ISTOÉ - Como o sr. vê a tentativa dos governistas de abortar as prévias?
Garotinho - Sem dúvida, é golpe. A prévia foi estabelecida em convenção e regulamentada pela executiva nacional. Todos participaram de tudo, inclusive os governistas. O verdadeiro motivo que os move é a vontade de entregar o partido ao PT.
2) TEXTO PUBLICADO NA REVISTA:
ISTOÉ - Líderes do PMDB intencionam ir à Justiça contra as prévias no partido. O sr. gosta dessa idéia?
Garotinho - (...) É uma tentativa de golpe, sem dúvida. A prévia foi estabelecida em convenção e regulamentada pela Executiva Nacional. Todos participaram de tudo, inclusive os governistas. Não dá para mudar as coisas assim, de uma hora para outra, como se fazia antigamente, num acerto de caciques que os índios têm de cumprir. O verdadeiro motivo que os move é a vontade de entregar o partido ao PT.
Menos mal, cara-pálida, que o Garotinho tenha deixado pra lá a travessura e evitado repetir FHC. Mas, cá pra nós, Marques, não dá para mudar as coisas assim, de uma hora para outra (...) num acerto de caciques que os índios têm de cumprir! (Sei não, mas fui tomado, agora, por uma enorme sensação de dèja vu...)
Pesquisando nos arquivos implacáveis do Google, que já não nos deixa dormir em paz, descobri que este mal insidioso grassou em outra redação, por coincidência dirigida por V. Muito antes do Garotinho, foi o garotão de Mr. Bush no Brasil, o embaixador John Danilovich, que protestou contra os graves sintomas da gripe. Pelo jeito, é pandemia mesmo! O vigilante Observatório da Imprensa publicou, no dia 17 de agosto de 2004, a seguinte matéria:
ISTOÉ DINHEIRO
Embaixada americana contesta entrevista
[do release da embaixada]
IstoÉ Dinheiro montou "entrevista" com embaixador Danilovich
A "entrevista" com o embaixador John Danilovich apresentada pela revista IstoÉ Dinheiro na edição de 11 de agosto, intitulada "10 Perguntas para John Danilovich", foi uma montagem.
O artigo apresenta uma colagem de trechos da palestra do embaixador Danilovich no Instituto Fernando Henrique Cardoso, dia 3 de agosto, além de respostas dadas pelo embaixador a um grupo de jornalistas no mesmo evento - a "entrevista" da IstoÉ Dinheiro não menciona o fato de que o jornalista Marco Damiani fez apenas três das cinco perguntas colocadas durante aquela conversa.
A embaixada enviou à redação da IstoÉ Dinheiro a seguinte carta, que não foi publicada na edição desta semana (18 de agosto):
Brasília, 11 de agosto de 2004
Diretor de Redação, Dinheiro
Fax: 11-3611-6411
dinheiro@zaz.com.br
Gostaria de alertar os leitores sobre o fato de que sua recente "entrevista" com o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, John Danilovich, foi montada. O repórter Marco Damiani, da Istoé Dinheiro, na realidade não fez uma entrevista com o embaixador. Em vez disso, entre cinco perguntas que alguns jornalistas dirigiram ao embaixador durante o intervalo de um seminário, três foram feitas pelo repórter . Várias das "perguntas" incluídas na sua entrevista nunca foram formuladas. O repórter tirou as últimas três respostas, fora de contexto, dos comentários preparados pelo embaixador para o seminário, cujo texto pode ser encontrado na íntegra na homepage da embaixada: (http://brasilia.usembassy.gov).
Esse formato montado de "entrevista" foi desonesto e é um desserviço aos seus leitores.
Obrigado
R. Wesley Carrington, adido de Imprensa
Um atento infectologista perceberia que o ponto em comum entre os dois pacientes, o ex-presidente e o ex-embaixador, é o editor executivo de ISTOÉ Marco Damiani, que ciscou nos dois quintais e deve ter sido contaminado. É a única explicação possível. Esta gripe quase secreta, que não deveria jamais atingir redações saudáveis e imunes ao vírus do esquentamento, não é o único problema da revista. Outro, mais escancarado e visível, atinge o coração do atual projeto editorial da revista: as fotos. Antes expressão da verdade, estágio cru da notícia, a foto nas suas talentosas mãos virou artifício para dourar a realidade e, desta forma atravessada, pregar pequenas peças no leitor incauto.
Boa idéia, mal copiada
Na edição 1895 da ISTOÉ (de 15 de fevereiro de 2006), V. publicou uma matéria de Comportamento, "Na onda das mulheres surfistas", no velho modelito 1 x 1 - uma página com uma bela foto, uma página com um texto leve, ligeiro, rapidinho, no gênero bobinho que V. imagina fazer tanto sucesso. Pois a foto, um belíssimo tubo de onda azul por onde desliza a catarinense Jacqueline Silva, campeã mundial do circuito em 2001, é uma pegadinha, um truque para enganar o leitor.
Alguém desatento pensaria que era um tubo portentoso num santuário havaiano. Alguém mais atento veria, no canto esquerdo inferior da página 48, que era uma reles montagem. Cruzes!, V. adora montagens, Marques! Como a contenção de despesas não recomenda gastar uma passagem ida e volta São Paulo-Havaí, o que lhe pareceu mais inteligente foi recortar o rosto da garota e colar sua carinha bonita no corpo - certamente não tão bonito quanto o original verde-amarelo - de alguma surfista privilegiada do Pacífico. (Espero que a Jacqueline, a surfista americana e o fotógrafo da AP, Pierre Tostee, autor da foto remendada, não nos leiam, senão os advogados terão ainda mais trabalho...) E viva o Santo Photoshop!
Só pra relembrar, aqui vai de novo a foto, aliás muito bonitinha:
No caso da Jacqueline, ainda existe a atenuante do crime confessado, a montagem. E quando ela não é anunciada? Bem, aí é processo na certa, como anunciou o ex-ministro José Dirceu. Na edição 437 (de 1º de fevereiro de 2006), a ISTOÉ Dinheiro, também dirigida por V., conseguiu fazer tudo errado numa única página, a 31. Na matéria "Dirceu sem destino", o ministro easy-rider aparece como o futuro proprietário de uma bela moto Harley Davidson de R$ 90 mil, que já estaria sendo produzida na fábrica de York, EUA. Para coroar o bolo, uma bela foto do Dirceu, todo pimpão, com tênis, jeans, jaqueta e luvas, montado na poderosa V-Road da Harley. Para quem duvida, olha ele aí, gente!
De novo, o velho truque: é a cara do ministro num corpinho que nunca foi dele. E, desta vez, nem há indicação de que tudo é montagem. O Zé Dirceu, que não é nenhum Garotinho, leu a travessura no exterior e mandou o advogado processar a revista pela traquinagem. Ele diz que não comprou, não vai comprar e, pior, nunca pilotou uma moto.
Quando não é a montagem, é a clonagem. É uma rima, mas não é uma solução. Por tudo que tenho ouvido a seu respeito, V. é um obcecado por belas fotos, especialmente fotos da imprensa americana, tipo Time ou Newsweek. Acho uma boa, até porque a imprensa de Tio Sam ainda é a melhor do mundo, apesar do momento vil e covarde que vive, intimidada pela direita, pelos falcões do Pentágono e pelo fundamentalismo religioso do bando de paranóicos que cerca o apalermado W.Bush. Voltemos às fotos: V. junta, reúne, espalha, guarda na gaveta toda e qualquer foto que lhe pareça boa. Acho bom se inspirar em coisas de qualidade. Mas inspirar não é copiar! Assim como a foto da gatinha surfista, V. distribui cópias via fax da foto eleita e pede outra igual, exatamente igual.
Se não é possível a clonagem, pura e simples, vem a montagem, dura e seca. Na capa da edição 1899 da ISTOÉ (de 15 de março de 2006), V. nos brindou com uma capa do nosso astronauta.
Lembra?
Pois é. Parecia uma boa sacada. O rosto sorridente do nosso herói espacial enfiado no seu reluzente capacete prateado, metido num terno com gravata num tom azulado - uniforme esquisito para um tenente-coronel da ativa da FAB, como é o caso do nosso simpático Marcos César Pontes. Mas, na semana passada, um amigo chato, desses que não deixa passar nada, passou diante da prateleira de revistas importadas, no aeroporto de São Paulo, e o que ele viu ali? Uma ISTOÉ importada? Não, uma ISTOÉ clonada. Observe:
É uma edição da revista americana Business 2.0 , que pode ser acessada no sítio www.cnnmoney.com, com uma capa exatamente igual. É um sujeito, sem o sorriso e a simpatia do nosso astronauta, enfiado no mesmo capacete prateado, com um terno escuro e a gravata, aqui, vermelha. Mas, neste caso, o terno não parece inadequado, diante do título da capa: The Entrepreneurs´s Guide to the Galaxy (algo como o "Guia de Empreendedores para a Galáxia"). O tema aqui é o filão de milionários e aventureiros abonados que, um dia, farão turismo espacial. Nada a ver com coronel de salário mixuruca de Força Aérea.
No caso da Businnes, a foto fazia sentido. No caso da ISTOÉ, a foto é um absurdo. O pior é que a ISTOÉ não foi clonada. É o contrário. A edição americana tem a data de capa de 27 de fevereiro de 2006 - duas semanas antes da brasileira. Mais uma grande idéia, mal copiada e mal executada, que brotou da gaveta inesgotável do diretor de ISTOÉ. Que mau exemplo, Marques!
A velha e boa semanal
V. poderia alegar que este é apenas mais um caso de "foto-referência", que hoje virou clichê na redação da revista, junto com a "foto-conceito" e a "foto-atitude". Não tenho a menor idéia do que seja isso, nem os atarantados fotógrafos de sua equipe, mas talvez seja outro belo tema para o Dines abordar no Observatório. Entre algumas das máximas da "ideologia marquesista", explicitada em reuniões com seus editores e repassada a suas equipes, destaco três preciosidades: A saber:
** Jóia 1: "Não gosto de suíte."
Para sorte do jornalismo mundial e da história americana, Mr. Marques não usurpava a cadeira de Ben Bradlee como editor do The Washington Post em 1972. Na noite de 17 de junho, cinco homens invadiram as salas do QG do partido Democrata, na capital americana. Se a dupla Woodward e Bernstein, que assumiu o caso, voltasse dias depois à sala de Mr. Marques pedindo mais espaço para a série que começava a nascer, seriam enxotados: "Não gosto de suíte". E o mundo não conheceria o Caso Watergate, uma bobagem de mais de dois anos que só acabou na noite de 8 de agosto de 1974, com a renúncia do vigarista Nixon.
Na II Guerra Mundial, uma tediosa suíte de cinco intermináveis anos, o gênio Marques teria que escolher um ou outro tema para não cansar seus leitores com a dura rotina do maior conflito bélico da humanidade. O Dia D talvez, Pearl Harbor quem sabe, provavelmente Hiroshima, um ou outro poderiam ter espaço no seu jornal ou revista. Stalingrado? Não, não, é sempre a mesma coisa todo dia, quero novidades. Vladimir Herzog? Vamos dar a missa na Catedral da Sé. E não quero suíte. O Riocentro? Publique o acidente com a bombinha no Puma do DOI-CODI. O resto é suíte. A história que não couber no espaço de uma edição do mestre Marques, bem.....azar da história.
O pior é que a vida, as guerras, os escândalos, os fatos insistem em se estender, prolongar e até repetir, semana após semana, para desespero de nosso intransigente diretor, que deve odiar até a Quebra-Nozes de Tchaikowski. Como o poeta Chico Buarque avisou, o tempo passou na janela e só Marques não viu.
** Jóia 2: "Não quero preto, nem pobre na revista".
É uma visão clean da vida que combina bem com seu estilo aprumado, fashion, de ternos bem cortados e etiqueta de griffe. Mas ficaria bem na Quinta Avenida, em Nova York, não na Lapa de Baixo paulistana. Sua visão estreita e preconceituosa ignora o fato de que o Brasil se estende além dos prédios modernosos, de vidro espelhado, da opulenta Avenida Paulista. Este país varonil de 190 milhões em ação, prontos para vestir verde-amarelo para torcer pelo Brasil-il-il na Copa do Mundo, ainda tem 55 milhões de pobres - gente com renda familiar de meio salário mínimo. É o Brasil que certamente não mostra sua cara na ISTOÉ de Marques.
Pretos e pobres - que coisa mais desagradável! - asseguram ao Brasil o vice-campeonato mundial em concentração de renda, atrás apenas de Serra Leoa. Não fazemos revista para este tipo de gente, até porque, se tivesse algum dinheiro no bolso, certamente iria gastar em comida, não numa edição amena e colorida de ISTOÉ, não é, Marques?
Os leitores apressadinhos da nova ISTOÉ provavelmente não gostariam de perder tempo com as constrangedoras comparações da ONU, mostrando que o mundo gasta US$ 18 bilhões por ano com maquiagem, quando bastariam US$ 19 bilhões para sustentar os 800 milhões de seres humanos - na maioria pretos, seguramente todos pobres - que não têm o que comer. Outros US$ 15 bilhões são desperdiçados com perfumes, US$ 5 bilhões a mais do que o exigido para garantir água num planeta onde 1,1 bilhão de pessoas - todas pobres, muitas pretas - não têm o que beber.
** Jóia 3: "Não gosto de política".
Acho desconcertante que o diretor de uma das mais importantes revistas semanais do país diga tamanha sandice. Goste V. ou não, a Política está aí, desde a Grécia Clássica, para nos apontar os caminhos que o cidadão tem para atender suas necessidades de forma organizada e evoluir como sociedade. Uma revista como ISTOÉ e jornalistas como nós, Marques, devemos sempre pensar e agir, pela via do bom e relevante jornalismo, para que se faça a melhor política e se exclua do meio os maus políticos que a degradam, como ferramenta fundamental da democracia e da liberdade.
V. ainda é muito jovem, Marques, para abdicar desta missão. Brasília, com todos os seus vícios e defeitos, é fundamental para que o país saia do buraco em que está. O Brasil que trate de melhorar Brasília, votando e elegendo em gente melhor. E V., faça sua parte, fazendo uma ISTOÉ boa como antigamente. Nas suas mãos, a velha e boa semanal do Seu Domingo morreu, acabou, já era.
Acabou de nascer a ISTOEra, a ISTOÉ da Era Marques.
Eu, e milhares de leitores, lamentamos.
Saudações, Luiz Cláudio Cunha
[Brasília, 27 de março de 2006]
(*) Jornalista
Luiz Cláudio Cunha (*)
Mensagem enviada pelo signatário, editor de Política da sucursal de Brasília da IstoÉ, a Carlos José Marques, diretor-editorial da IstoÉ - com cópias para Domingo Alzugaray, diretor responsável da Editora Três, e Alberto Dines, editor responsável deste Observatório. O OI procurou Marques por e-mail, às 19h43 de segunda-feira (27/3), solicitando uma manifestação sua; passadas 24 horas, não obteve resposta. De todo modo, o espaço para sua réplica está garantido. Intertítulos da Redação do OI. (L.E.)
"Jornalismo é a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter." Cláudio Abramo (1923-1987)
Marques, eu não o conheço e, certamente, V. me conhece menos ainda. Sou um devoto da palavra escrita. Minha inspiração é o bravo Churchill, meu conservador predileto, que atravessou as madrugadas de Londres iluminadas pelas bombas da Luftwaffe ditando bilhetes, lapidando discursos memoráveis e escrevendo a História que o faria ganhar a guerra. Como o velho bulldog inglês, estou com a alma angustiada pelo bombardeio da semana passada, que detonou o emprego de dois editores na sucursal, Amaury Ribeiro Jr. e Donizete Arruda e, por conseqüência, do chefe Tales Faria, demitido ao reagir com a dignidade devida à sua injustificada blitzkrieg. Sei que nem bilhete, nem discurso vão apagar este incêndio, mas silenciar agora seria admitir que V. está no caminho da vitória. "Não se ganham guerras com retiradas", advertiu o sábio Winston ao povo inglês, ainda inebriado pelo épico milagroso de Dunquerque. A inglória e enganosa retirada de Brasília marca um atalho perigoso para a derrota. Não se abate impunemente um profissional do talento e da integridade de Tales Faria sem lançar um véu de maus presságios sobre os novos tempos. Sob o comando dele, ao longo de sete anos, a Sucursal de Brasília de ISTOÉ chegou a sete finais de Prêmio Esso - e faturou três, uma delas com o demitido Amaury. O Tales - ao contrário de V., Marques - atende com sobras aos dois paradigmas expressos pelo Cláudio Abramo para esta profissão tão marcada por bombas, retiradas, derrotas, vitórias, dignidade e vilanias.
Com 55 anos de vida e 37 de estrada, já vi muita coisa bonita e muita coisa feia nas redações de jornais e revistas. Com este longo prontuário, sou praticamente uma página virada e, neste aspecto, V. ainda é um noviço no jornalismo. Eu só tenho passado e V., pelo que vejo, só tem futuro, muito futuro. Por isso, não quero perder aqui a chance de discutir não nossas carreiras, com inflexões tão distintas, mas o futuro imediato de algo que preocupa a todos nós: a revista ISTOÉ. Compartilho este debate com outras duas pessoas, e justifico. O Seu Domingo, por ser o interessado direto no futuro de sua revista, condicionado ao perfil e ao conteúdo dos profissionais que vão garantir sua qualidade e sua relevância. E o Dines, por ser o responsável e mentor do Observatório de Imprensa, um espaço nobre e influente na internet dedicado justamente ao objetivo central desta carta: a reflexão, a crítica, o debate maduro e responsável do que pensamos e do que fazemos como jornalistas, desde o mais modesto repórter até o mais poderoso chefão - como V., Marques.
Vivemos tempos muito estranhos, em que as coisas que precisam ser ditas ficam escamoteadas, camufladas, sussurradas, caladas. Nada se reclama, nada se critica, para preservar amigos, cargos, salários, posições, espaços de poder, enquanto o jornalismo vai se diluindo e dissolvendo na sua incapacidade de autocrítica. Não sou de freqüentar boteco, nem de extravasar minhas mágoas em mesa de bar, Marques. Prefiro ganhar a guerra resistindo, pensando e escrevendo. Sem mágoa, nem ressentimento, prefiro escancarar aqui - com a ajuda do Observatório da Imprensa - uma discussão que, na nossa restrita área de influência, ficaria confinada às conversas pouco conclusivas que envolvem só os personagens diretamente interessados - o diretor que demite, o chefe demitido, os editores perplexos, os repórteres confusos, todos nós desorientados e apreensivos com o novo passaralho que vem por aí na semana que vem, no mês seguinte, quem sabe?
Quero quebrar esta caixa preta e propor, com a serenidade recomendável e a prudência necessária, um debate sobre o papel que todos nós temos no empobrecimento continuado de algumas de nossas principais revistas semanais. A crise econômica, o custo do papel, a retração dos anunciantes, a concorrência da TV, o surgimento da internet e outros quesitos geralmente justificam a recorrente onda de enxugamentos nas redações de jornais e revistas, nivelando por baixo salários e profissionais. Esta é uma dura realidade, que não é nova nem parece prestes a acabar. Pelo contrário.
Onde o norte?
Neste quadro recessivo, que inquieta patrões e assusta empregados, é natural o surgimento do "jornalismo de resultado" e seus profetas - os executivos moderninhos que prometem redações baratas, revistas idem, amenidades muitas e reflexão zero. Apostam no padrão do leitor que consome mas não pensa, no perfil Homer Simpson que se satisfaz com o atendimento às suas demandas meramente consumistas, do estilo shopping center que simboliza o templo de devoção da classe média e seus periféricos. Para este tipo de leitor, com tanto a comprar e tão pouca disposição para ler, o jeito é o modelito USA Today, o jornalão fast food destes tempos midiáticos para uma leitura rápida, calórica e saborosa como um Big Mac. Assim, nossas semanais sofrem cada vez mais a tentação de atender a este novo mercado emergente, abdicando de sua função primordial: o texto mais consistente, mais abrangente, para refletir e ponderar sobre a salada de informações frenéticas e redundantes que o dia-a-dia de jornais, rádios, TVs e internet enfia goela abaixo do cidadão.
A revista, que devia ser o oásis de reflexão para ajudar o pobre leitor a atravessar esta overdose semanal de notícias e mais notícias, abdica de seu papel e mergulha no turbilhão do jornalismo rápido e rasteiro. A estética vale mais do que a essência. A forma se impõe ao conteúdo. O texto curto confina os detalhes. A foto, espelhada e escancarada, come os espaços de uma informação cada vez mais estrangulada. Tudo induz uma leitura ligeira, quase leviana, para não afrontar o relógio e a agenda do nosso leitor tão apressado. E, em vez de procurar saciar a fome de informação e conteúdo, a revista sucumbe e se submete à magra dieta jornalística que ela diz ser exigência do leitor moderno. Alguém está enganando alguém neste jogo.
Como a idéia, aqui, é dizer o que precisa ser dito, devo ser franco e direto: a atual ISTOÉ conseguiu, no espaço de poucas semanas, conquistar a merecida pole position no grid da mediocridade nacional. Uma revista, como diria Otto Lara Resende, bonitinha mas ordinária. Das grandes semanais brasileiras, clube que ela sempre integrou com honra e mérito, ISTOÉ hoje se transformou num arremedo da revista instigante, provocativa, inteligente que era. Sob seu tacão, Marques, a revista afundou num mar de futilidades e amenidades, tragada por uma pauta desorientada e açoitada por textos curtinhos de idéias e de talento.
Para uma semanal que já teve em seu timão capitães do porte de Mino Carta, Tão Gomes Pinto, Milton Coelho da Graça e Hélio Campos Mello, seria justo esperar uma travessia e um rumo mais definido. A revista perdeu o norte e corre o sério risco de virar uma publicação fútil e irrelevante, incapaz de arrastar o leitor de sua casa até a banca mais próxima. Leitor só levanta o traseiro do comodismo, como diria o companheiro Lula, atraído pelo furo, pela reportagem bem apurada e bem escrita, pela matéria que faz história, que consola os aflitos e aflige os consolados.
Bicada inexistente.
ISTOÉ, pelo jeito, não quer afligir mais ninguém, principalmente os poderosos. Deve ser por isso que a ISTOÉ desta semana consegue o milagre de produzir uma matéria sobre o caseiro Nildo, aquele que viu as bandalheiras da "República de Ribeirão Preto", sem citar uma única vez o santo nome de Antonio Palocci. E discorre sobre a vergonhosa quebra de sigilo do caseiro omitindo acintosamente o nome do assessor de imprensa Marcelo Netto, um dos suspeitos de envolvimento no crime. Reclamo porque fui eu que escrevi a matéria, e nela constavam os dois nomes - Palocci e Marcelo. Meu texto foi lipoaspirado, desintoxicado dos nomes do ministro e do assessor, e assim publicado. Por isso, recusei assinar a matéria, que não refletia o que o repórter mandou de Brasília na noite de quinta-feira 23 . E nem precisaria tanto drama, porque os nomes da dupla já estavam, desde manhã cedo, nas edições da Folha de S.Paulo e do Correio Braziliense. A revista não estaria fazendo carga contra ninguém, estaria apenas sendo fiel aos fatos. Perdeu uma bela oportunidade de não ficar calada. Até porque, momentos atrás, o Palocci acaba de se demitir, por todos os motivos que tínhamos e não explicitamos.
Ainda bem que a concorrente, a VEJA, cumpriu seu dever direitinho, colocando inclusive uma foto do Marcelo ao lado de seu protegido. Até o colunista Diogo Mainardi, sob o título um tanto explícito de "Marcelo Netto, Marcelo Netto", disse com toda a clareza: "Quem difundiu o extrato bancário do caseiro foi o assessor de imprensa de Palocci, Marcelo Netto. Desde a semana passada, todos os jornalistas sabiam disso. Marcelo Netto é jornalista. E jornalistas não denunciam jornalistas".
Silêncios assim, inexplicáveis, é que incomodam tanta gente que, como o filósofo Millôr Fernandes, acha que jornalismo é oposição - o resto é armazém de secos e molhados. Uma revista semanal com a história de ISTOÉ não pode acabar disputando espaço no cesto de revistinhas de sala de espera de dentista. Ninguém tem o direito de malbaratar o esforço sério de tantos profissionais talentosos, ao longo de tantos anos, que ajudaram a construir o prestígio e a importância de ISTOÉ no jornalismo brasileiro.
Falo isso porque o exemplo que vem de cima é preocupante. Sua estréia na direção da revista, na edição 1894 (de 8 de fevereiro de 2006), foi bombástica: uma entrevista forte de FHC. Título da chamada na capa: "A ética do PT é roubar". Só pra lembrar:
Era uma frase candente, que até destoava um pouco do estilo medido e comedido do elegante doutor honoris causa de Cambridge, Sorbonne e quetais. Por isso, valia o quanto pesava. O PT ficou tão furibundo que anunciou processo na Justiça pela injúria publicada. Mas exatamente um mês depois (8 de março de 2006), Cláudio Humberto publica a seguinte nota em sua coluna, sempre bem informada e comentada:
A dedução que se faz, a partir destes fatos, é que a bicada do tucano-rei simplesmente não existiu. Alguém no comando da revista achou por bem melhorar o que FHC diz, sempre com elegância e na maioria das vezes com propriedade. Ou seja, enxertaram uma frase, dura e agressiva, na conversa gravada de um ex-presidente da República, e tascaram o remendo na capa da revista! Em qualquer publicação séria, isso seria motivo para uma rápida apuração e inapelável demissão. Mas nada aconteceu.
Explicação possível
Podia ter sido um acidente de percurso, algo a ser relevado, travessura que não se repetiria mais. Bola pra frente! Mas eis que, quatro edições seguintes, na ISTOÉ 1898 (de 8 de março de 2006), que tinha como capa a pandemia da gripe aviária, é reservada a entrevista das páginas vermelhas ao ex-governador Anthony Garotinho, candidato dali a dez dias nas prévias do PMDB. E a gripe que deixou bicudo FHC também contaminou o coitado do Garotinho. A assessoria do ex-governador percebeu, com natural perplexidade, que o texto trazia não só respostas não dadas, mas perguntas que não haviam sido feitas, conforme os registros gravados da conversa. Vou reproduzir apenas o trecho que melhor identifica o foco da doença. É o seguinte:
1) TEXTO GRAVADO E TRANSCRITO DA CONVERSA:
ISTOÉ - Como o sr. vê a tentativa dos governistas de abortar as prévias?
Garotinho - Sem dúvida, é golpe. A prévia foi estabelecida em convenção e regulamentada pela executiva nacional. Todos participaram de tudo, inclusive os governistas. O verdadeiro motivo que os move é a vontade de entregar o partido ao PT.
2) TEXTO PUBLICADO NA REVISTA:
ISTOÉ - Líderes do PMDB intencionam ir à Justiça contra as prévias no partido. O sr. gosta dessa idéia?
Garotinho - (...) É uma tentativa de golpe, sem dúvida. A prévia foi estabelecida em convenção e regulamentada pela Executiva Nacional. Todos participaram de tudo, inclusive os governistas. Não dá para mudar as coisas assim, de uma hora para outra, como se fazia antigamente, num acerto de caciques que os índios têm de cumprir. O verdadeiro motivo que os move é a vontade de entregar o partido ao PT.
Menos mal, cara-pálida, que o Garotinho tenha deixado pra lá a travessura e evitado repetir FHC. Mas, cá pra nós, Marques, não dá para mudar as coisas assim, de uma hora para outra (...) num acerto de caciques que os índios têm de cumprir! (Sei não, mas fui tomado, agora, por uma enorme sensação de dèja vu...)
Pesquisando nos arquivos implacáveis do Google, que já não nos deixa dormir em paz, descobri que este mal insidioso grassou em outra redação, por coincidência dirigida por V. Muito antes do Garotinho, foi o garotão de Mr. Bush no Brasil, o embaixador John Danilovich, que protestou contra os graves sintomas da gripe. Pelo jeito, é pandemia mesmo! O vigilante Observatório da Imprensa publicou, no dia 17 de agosto de 2004, a seguinte matéria:
ISTOÉ DINHEIRO
Embaixada americana contesta entrevista
[do release da embaixada]
IstoÉ Dinheiro montou "entrevista" com embaixador Danilovich
A "entrevista" com o embaixador John Danilovich apresentada pela revista IstoÉ Dinheiro na edição de 11 de agosto, intitulada "10 Perguntas para John Danilovich", foi uma montagem.
O artigo apresenta uma colagem de trechos da palestra do embaixador Danilovich no Instituto Fernando Henrique Cardoso, dia 3 de agosto, além de respostas dadas pelo embaixador a um grupo de jornalistas no mesmo evento - a "entrevista" da IstoÉ Dinheiro não menciona o fato de que o jornalista Marco Damiani fez apenas três das cinco perguntas colocadas durante aquela conversa.
A embaixada enviou à redação da IstoÉ Dinheiro a seguinte carta, que não foi publicada na edição desta semana (18 de agosto):
Brasília, 11 de agosto de 2004
Diretor de Redação, Dinheiro
Fax: 11-3611-6411
dinheiro@zaz.com.br
Gostaria de alertar os leitores sobre o fato de que sua recente "entrevista" com o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, John Danilovich, foi montada. O repórter Marco Damiani, da Istoé Dinheiro, na realidade não fez uma entrevista com o embaixador. Em vez disso, entre cinco perguntas que alguns jornalistas dirigiram ao embaixador durante o intervalo de um seminário, três foram feitas pelo repórter . Várias das "perguntas" incluídas na sua entrevista nunca foram formuladas. O repórter tirou as últimas três respostas, fora de contexto, dos comentários preparados pelo embaixador para o seminário, cujo texto pode ser encontrado na íntegra na homepage da embaixada: (http://brasilia.usembassy.gov).
Esse formato montado de "entrevista" foi desonesto e é um desserviço aos seus leitores.
Obrigado
R. Wesley Carrington, adido de Imprensa
Um atento infectologista perceberia que o ponto em comum entre os dois pacientes, o ex-presidente e o ex-embaixador, é o editor executivo de ISTOÉ Marco Damiani, que ciscou nos dois quintais e deve ter sido contaminado. É a única explicação possível. Esta gripe quase secreta, que não deveria jamais atingir redações saudáveis e imunes ao vírus do esquentamento, não é o único problema da revista. Outro, mais escancarado e visível, atinge o coração do atual projeto editorial da revista: as fotos. Antes expressão da verdade, estágio cru da notícia, a foto nas suas talentosas mãos virou artifício para dourar a realidade e, desta forma atravessada, pregar pequenas peças no leitor incauto.
Boa idéia, mal copiada
Na edição 1895 da ISTOÉ (de 15 de fevereiro de 2006), V. publicou uma matéria de Comportamento, "Na onda das mulheres surfistas", no velho modelito 1 x 1 - uma página com uma bela foto, uma página com um texto leve, ligeiro, rapidinho, no gênero bobinho que V. imagina fazer tanto sucesso. Pois a foto, um belíssimo tubo de onda azul por onde desliza a catarinense Jacqueline Silva, campeã mundial do circuito em 2001, é uma pegadinha, um truque para enganar o leitor.
Alguém desatento pensaria que era um tubo portentoso num santuário havaiano. Alguém mais atento veria, no canto esquerdo inferior da página 48, que era uma reles montagem. Cruzes!, V. adora montagens, Marques! Como a contenção de despesas não recomenda gastar uma passagem ida e volta São Paulo-Havaí, o que lhe pareceu mais inteligente foi recortar o rosto da garota e colar sua carinha bonita no corpo - certamente não tão bonito quanto o original verde-amarelo - de alguma surfista privilegiada do Pacífico. (Espero que a Jacqueline, a surfista americana e o fotógrafo da AP, Pierre Tostee, autor da foto remendada, não nos leiam, senão os advogados terão ainda mais trabalho...) E viva o Santo Photoshop!
Só pra relembrar, aqui vai de novo a foto, aliás muito bonitinha:
No caso da Jacqueline, ainda existe a atenuante do crime confessado, a montagem. E quando ela não é anunciada? Bem, aí é processo na certa, como anunciou o ex-ministro José Dirceu. Na edição 437 (de 1º de fevereiro de 2006), a ISTOÉ Dinheiro, também dirigida por V., conseguiu fazer tudo errado numa única página, a 31. Na matéria "Dirceu sem destino", o ministro easy-rider aparece como o futuro proprietário de uma bela moto Harley Davidson de R$ 90 mil, que já estaria sendo produzida na fábrica de York, EUA. Para coroar o bolo, uma bela foto do Dirceu, todo pimpão, com tênis, jeans, jaqueta e luvas, montado na poderosa V-Road da Harley. Para quem duvida, olha ele aí, gente!
De novo, o velho truque: é a cara do ministro num corpinho que nunca foi dele. E, desta vez, nem há indicação de que tudo é montagem. O Zé Dirceu, que não é nenhum Garotinho, leu a travessura no exterior e mandou o advogado processar a revista pela traquinagem. Ele diz que não comprou, não vai comprar e, pior, nunca pilotou uma moto.
Quando não é a montagem, é a clonagem. É uma rima, mas não é uma solução. Por tudo que tenho ouvido a seu respeito, V. é um obcecado por belas fotos, especialmente fotos da imprensa americana, tipo Time ou Newsweek. Acho uma boa, até porque a imprensa de Tio Sam ainda é a melhor do mundo, apesar do momento vil e covarde que vive, intimidada pela direita, pelos falcões do Pentágono e pelo fundamentalismo religioso do bando de paranóicos que cerca o apalermado W.Bush. Voltemos às fotos: V. junta, reúne, espalha, guarda na gaveta toda e qualquer foto que lhe pareça boa. Acho bom se inspirar em coisas de qualidade. Mas inspirar não é copiar! Assim como a foto da gatinha surfista, V. distribui cópias via fax da foto eleita e pede outra igual, exatamente igual.
Se não é possível a clonagem, pura e simples, vem a montagem, dura e seca. Na capa da edição 1899 da ISTOÉ (de 15 de março de 2006), V. nos brindou com uma capa do nosso astronauta.
Lembra?
Pois é. Parecia uma boa sacada. O rosto sorridente do nosso herói espacial enfiado no seu reluzente capacete prateado, metido num terno com gravata num tom azulado - uniforme esquisito para um tenente-coronel da ativa da FAB, como é o caso do nosso simpático Marcos César Pontes. Mas, na semana passada, um amigo chato, desses que não deixa passar nada, passou diante da prateleira de revistas importadas, no aeroporto de São Paulo, e o que ele viu ali? Uma ISTOÉ importada? Não, uma ISTOÉ clonada. Observe:
É uma edição da revista americana Business 2.0 , que pode ser acessada no sítio www.cnnmoney.com, com uma capa exatamente igual. É um sujeito, sem o sorriso e a simpatia do nosso astronauta, enfiado no mesmo capacete prateado, com um terno escuro e a gravata, aqui, vermelha. Mas, neste caso, o terno não parece inadequado, diante do título da capa: The Entrepreneurs´s Guide to the Galaxy (algo como o "Guia de Empreendedores para a Galáxia"). O tema aqui é o filão de milionários e aventureiros abonados que, um dia, farão turismo espacial. Nada a ver com coronel de salário mixuruca de Força Aérea.
No caso da Businnes, a foto fazia sentido. No caso da ISTOÉ, a foto é um absurdo. O pior é que a ISTOÉ não foi clonada. É o contrário. A edição americana tem a data de capa de 27 de fevereiro de 2006 - duas semanas antes da brasileira. Mais uma grande idéia, mal copiada e mal executada, que brotou da gaveta inesgotável do diretor de ISTOÉ. Que mau exemplo, Marques!
A velha e boa semanal
V. poderia alegar que este é apenas mais um caso de "foto-referência", que hoje virou clichê na redação da revista, junto com a "foto-conceito" e a "foto-atitude". Não tenho a menor idéia do que seja isso, nem os atarantados fotógrafos de sua equipe, mas talvez seja outro belo tema para o Dines abordar no Observatório. Entre algumas das máximas da "ideologia marquesista", explicitada em reuniões com seus editores e repassada a suas equipes, destaco três preciosidades: A saber:
** Jóia 1: "Não gosto de suíte."
Para sorte do jornalismo mundial e da história americana, Mr. Marques não usurpava a cadeira de Ben Bradlee como editor do The Washington Post em 1972. Na noite de 17 de junho, cinco homens invadiram as salas do QG do partido Democrata, na capital americana. Se a dupla Woodward e Bernstein, que assumiu o caso, voltasse dias depois à sala de Mr. Marques pedindo mais espaço para a série que começava a nascer, seriam enxotados: "Não gosto de suíte". E o mundo não conheceria o Caso Watergate, uma bobagem de mais de dois anos que só acabou na noite de 8 de agosto de 1974, com a renúncia do vigarista Nixon.
Na II Guerra Mundial, uma tediosa suíte de cinco intermináveis anos, o gênio Marques teria que escolher um ou outro tema para não cansar seus leitores com a dura rotina do maior conflito bélico da humanidade. O Dia D talvez, Pearl Harbor quem sabe, provavelmente Hiroshima, um ou outro poderiam ter espaço no seu jornal ou revista. Stalingrado? Não, não, é sempre a mesma coisa todo dia, quero novidades. Vladimir Herzog? Vamos dar a missa na Catedral da Sé. E não quero suíte. O Riocentro? Publique o acidente com a bombinha no Puma do DOI-CODI. O resto é suíte. A história que não couber no espaço de uma edição do mestre Marques, bem.....azar da história.
O pior é que a vida, as guerras, os escândalos, os fatos insistem em se estender, prolongar e até repetir, semana após semana, para desespero de nosso intransigente diretor, que deve odiar até a Quebra-Nozes de Tchaikowski. Como o poeta Chico Buarque avisou, o tempo passou na janela e só Marques não viu.
** Jóia 2: "Não quero preto, nem pobre na revista".
É uma visão clean da vida que combina bem com seu estilo aprumado, fashion, de ternos bem cortados e etiqueta de griffe. Mas ficaria bem na Quinta Avenida, em Nova York, não na Lapa de Baixo paulistana. Sua visão estreita e preconceituosa ignora o fato de que o Brasil se estende além dos prédios modernosos, de vidro espelhado, da opulenta Avenida Paulista. Este país varonil de 190 milhões em ação, prontos para vestir verde-amarelo para torcer pelo Brasil-il-il na Copa do Mundo, ainda tem 55 milhões de pobres - gente com renda familiar de meio salário mínimo. É o Brasil que certamente não mostra sua cara na ISTOÉ de Marques.
Pretos e pobres - que coisa mais desagradável! - asseguram ao Brasil o vice-campeonato mundial em concentração de renda, atrás apenas de Serra Leoa. Não fazemos revista para este tipo de gente, até porque, se tivesse algum dinheiro no bolso, certamente iria gastar em comida, não numa edição amena e colorida de ISTOÉ, não é, Marques?
Os leitores apressadinhos da nova ISTOÉ provavelmente não gostariam de perder tempo com as constrangedoras comparações da ONU, mostrando que o mundo gasta US$ 18 bilhões por ano com maquiagem, quando bastariam US$ 19 bilhões para sustentar os 800 milhões de seres humanos - na maioria pretos, seguramente todos pobres - que não têm o que comer. Outros US$ 15 bilhões são desperdiçados com perfumes, US$ 5 bilhões a mais do que o exigido para garantir água num planeta onde 1,1 bilhão de pessoas - todas pobres, muitas pretas - não têm o que beber.
** Jóia 3: "Não gosto de política".
Acho desconcertante que o diretor de uma das mais importantes revistas semanais do país diga tamanha sandice. Goste V. ou não, a Política está aí, desde a Grécia Clássica, para nos apontar os caminhos que o cidadão tem para atender suas necessidades de forma organizada e evoluir como sociedade. Uma revista como ISTOÉ e jornalistas como nós, Marques, devemos sempre pensar e agir, pela via do bom e relevante jornalismo, para que se faça a melhor política e se exclua do meio os maus políticos que a degradam, como ferramenta fundamental da democracia e da liberdade.
V. ainda é muito jovem, Marques, para abdicar desta missão. Brasília, com todos os seus vícios e defeitos, é fundamental para que o país saia do buraco em que está. O Brasil que trate de melhorar Brasília, votando e elegendo em gente melhor. E V., faça sua parte, fazendo uma ISTOÉ boa como antigamente. Nas suas mãos, a velha e boa semanal do Seu Domingo morreu, acabou, já era.
Acabou de nascer a ISTOEra, a ISTOÉ da Era Marques.
Eu, e milhares de leitores, lamentamos.
Saudações, Luiz Cláudio Cunha
[Brasília, 27 de março de 2006]
(*) Jornalista
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